terça-feira, 14 de abril de 2015

FÁTIMA PIRES | Sobras de Deus, um depoimento



Caro amigo, já estava pra lá de encabulada por não enviar as anotações da novela, acho que elas são bem pessoais, e não servem exatamente para nada. Estavam manuscritas e eu sem tempo de colocá-las por aqui, mas como você pediu que fizesse por via eletrônica, assim será. Tomei a liberdade de identificar as partes como capítulos, mas só para facilitar o entendimento.
Primeiro, uma curiosidade que me fez sorrir: quando me falou por e-mail sobre a novela, falou-me que se tratava da relação de um menino de 13 anos com “um rio louco” (quando li vi que era um tio) e aí comecei a pensar numa perspectiva muito mais do Guimarães Rosa do que de qualquer outro (risos)
Vamos às anotações:
Antes, preciso dizer que, ao concluir a leitura do texto, pensei em falar contigo do R. Barthes,

“O texto aborda-se, experimenta-se em relação ao signo. A obra fecha-se sobre um significado. Podemos atribuir este significado a dois modos de significação: ou o pretendemos aparente, e a obra é então objeto de uma ciência da letra, que é a filologia; ou esse significado é reputado secreto, último, é preciso procurá-lo, e a obra releva então de hermenêutica, de uma interpretação (marxista, psicanalista, temática etc.)...” ([p.57], O Rumor da Língua)

Considero a novela como um texto de significados implícitos. Talvez o procedimento mais adequado esteja na “procura” de significados específicos, que “de par em par” alavancam a ideia central do texto. E você não facilitou: “nenhum acesso do que se é chega a explicar o que se alcança...” (rindo). Mas vou por alguns indícios, e talvez consiga sugerir alguma coisa plausível.
Na parte 1 ("Céus remotos") uma família começa a ser apresentada ao leitor e esta composição se estende pelos demais capítulos. Esta apresentação vem, na maior parte das vezes, em forma de considerações dos/sobre os personagens quanto a vida, reflexões extraídas de vivências conflituosas, muitas vezes traumáticas. Uma família mergulhada em dor, é o que passa. Interessante também é que não somente os personagens “falam”, os espaços também, através de analogias, as mais originais. Só para exemplificar: “as portas” [p.12].
A mulher no texto. Talvez esteja aqui uma coisa difícil de dizer. Mas me deu a impressão que há uma depreciação dos papéis femininos, mostram-se sempre sem vida própria, vivem “em função de”. A intenção era essa mesmo? Veja: Tio Eudoro fala que a mulher é a “antífrase da razão”; Alfredo Aquilino reporta-se à mulher como aquela que tem visão, mas que a ação cabe ao homem; a esposa de Anselmo Calamares, Adelaide, tem “amigas emplumadas e ridículas”, é a “confusa Adelaide”. A enfermeira Firmina é “a tonta, tão adorável”. Para completar a visão machista, aristocrática e burguesa da família, Anselmo diz: “ Não procurarei mulheres entre músicos ou qualquer tipo de círculo de vagabundos”. Claro está que não é a tua visão, talvez uma construção que assegura a crise porque passa a família. Não sei…
O piano aparece no primeiro capítulo e acompanha o enredo de toda a trama. A analogia entre o piano e o “dragão sempre dormindo” é ótima! Interessa ver também que há um recurso à ideia de uma existência real e de uma imagem. O que guarda mais o piano? “as ondulações sonoras da vida” [p.46] –  é isto? acho que sim.
O conflito entre Anselmo e Alfredo, este último, uma veia poética usurpada. Um disfarce, uma desculpa, para as longas conversas entre Pequeno Ansioso e o seu Tio, uma maneira inteligente de tecer comentários muitas vezes mordazes sobre o comportamento humano. Alfredo e Anselmo: uma disputa insana. Um resultado insano?
Alfredo acusa Anselmo de “traçar um círculo ao seu redor”. Veja: percebo nas pp. 22 e 28 uma identidade no “diálogo” entre Pequeno Ansioso com o seu Tio Alfredo e depois entre ele e a Mãe Dolores (a empregada espírita). Parece-me que de certa forma o “traçar um círculo” é uma característica bem humana que foi assinalada para um dos personagens, mas serve a quase todos. Esta é uma atitude que muitas vezes assinala um caráter defensivo.
No capítulo 2 ("Uma margem insuportável do silêncio")
Veja estas passagens: “Pequeno Ansioso, ainda sem o saber, mostrava-se aplicado na maior das lições: deixar que tudo seja e desapareça” [p.26]; “Acho que o artista acaba por destruir tudo o que cria” [p. 28]; “A plenitude é feita de uma exímia sequência de abandonos” [p. 30]. São indícios de um sofrimento quanto à perda e de uma terapêutica voltada para a superação que, muitas vezes, consiste na agressão do próprio sentimento.
Uma constante também é a referência a inquietude, ao acaso, a presença da morte, e, claro a Deus: “Leva tudo consigo e nos põe a viver de espanto” [p.28]. Impressionante!!!! Este Deus, que retira, extrai, só deixa sobras, contraria a ideia de um Deus misericordioso. Esta é sem dúvida uma questão pra lá de instigante, atraente. Vejo também este componente em outro livro teu, Alma em Chamas, “É possível que Deus haja morrido de sua fome infinita” [p.169] … Estou certa? Nessa mesma medida: “a busca desenfreada da essencialidade é um distúrbio patológico” [p.18].
A descoberta sexual de Pequeno Ansioso com Dolores, mesclado com a crença da moça, torna toda a experiência traumática e, em certo sentido, trágica, em seu desfecho. A moça é sarcástica aqui: “O que esperavas? A hóstia consagrada?” [p.34]. Um ato humano plausível de redenção? Talvez seja a ideia, uma brincadeira com o leitor.
No capítulo 3 ("Algum silêncio vindo das margens")
Há aqui uma reflexão de Pequeno Ansioso: “Tenho crescido em um mundo enevoado, onde êxtase e tragédia tendem a confundir-se.”  Sem dúvida, essa é uma questão central no texto.
A ausência paterna fica agora melhor registada, e pareceu-me, que o tio Alfredo assume para o menino uma espécie de identidade masculina/paterna, necessária em sua tenra idade.
O Pequeno Ansioso vive em meio à crise familiar; as ausências do pai e da mãe e um conflito interno que acentua-se com as reflexões do tio Alfredo: “Não há mais jeito no ser que sê-lo” [p.37]; “Recusava-se a aceitar que a vontade de ser não passava de um elemento apedrejado pelo acaso” [p.38]; “Minha vontade de ser treinava com o imprevisível e o improvável” [p.38].
O capítulo 4 ("Escuridão numinosa")
As anotações de Pequeno Ansioso das reflexões do tio Alfredo dizem respeito à fragilidade da condição humana: “um ogro errante ou matuto cheio de si”… é também uma passagem belíssima do texto.
Outra referência: as famílias e as suas pistas. Não se apaga nada, somos marcados demais pelo percurso familiar.
O capítulo 5 ("Invisíveis trilhas")
A avó como ponte “que não soube ir de um canto a outro de si mesma...” ou assim “A Avó sempre foi uma ponte entre a realidade o desastre existencial da família”. Ciente do engodo poético havido na família, mas se calava. Pressa na teia familiar.
De novo aparece a figura paterna, só que desta vez com muito mais dor “Não creio que pensasse em mim. Na verdade jamais trocamos uma única palavra” [p.59].
Por fim, mãe – mulher – Deus – livros… panteísmo: analogias de tormento, mas também de identificação.
Pronto? Claro que não. Desculpe-me pelas falhas interpretativas, minha limitação na tua área faz com que saia assim. Mas como você pediu… depois falamos então. Já falei mas vou repetir: adorei ler o texto.
Grande abraço,

Fátima Pires



IOSITO AGUIAR | A propósito de Sobras de Deus


Já a partir do título da novela (novela?) firma-se uma certa arrogância que nos segue por todas as páginas. Na descrição dos sacrifícios, perversões e abandonos, persiste o sentimento de arrogância. Irrita-me, confesso, o viés com que o autor contempla o mundo.
É sumamente perigoso para qualquer poeta ter seu mundo de inocência violado. É que o poeta ao ser contemplado com o epós, ganha uma parte de DEUS mas, também, uma do Diabo para faire pendant. É quando, então, ele revela seu lado mais blasé. Rimbaud ao ter sua inocência violada, transformou-se num contrabandista. Que fosse seres humanos sua mercadoria, pouco lhe importava.
Afinal, não tinham violado o seu universo de inocência? Então, agora que o aguentassem; Höelderlin não suportando a violência e agressividade do mundo à sua volta, escapou pela loucura. Divina loucura! Diria meu velho mestre, Casais Monteiro.
O poeta tem de ser deixado in-nocens para que possa incorporar seu texto à poesia e possa dar a cada palavra seu próprio som e ao texto sua própria sintaxe. O amargor que no intertítulo CÉUS REMOTOS o tio Eudoro Antunes destila: “Sonhei tanto com alguma mínima forma de transcendência”, deixa-nos a imaginar que, possivelmente, a brutal franqueza de mãe Dolores e suas atitudes, tenham causado estragos irreversíveis no universo do Pequeno Ansioso.
A morte do tio Eudoro embaralhou-lhe a vida. Afinal, “um morto nunca morre em si”. Mas, divertir-se enganado pelo bisavô, ainda que este lesse François Villon? É então quando a escatologia rola solta ou seria a coprofilia?
O lugar comum desgastou as conexões vocabulares. Por isso mesmo, o poeta brinca de novela e escande às gargalhadas as mais torpes figuras de expressão: “o que somos é o que existe ou o que desejamos?” O chato mesmo é que “só a infelicidade quer dormir com Deus!”
A percepção consciente de todos os fragmentos, todos os detalhes e açoitado pelo derrame de imagens: “vereda que levava a lugar nenhum”, e o grande aprendizado com o tio: “...não há réstia de cor ou fragmento de luz que não traga em si a chave de toda a paleta”. Todos sabemos as feridas que os fantasmas românticos abrem em nossos peitos - diz Jorge Lúcio de Campos - a nos lembrar de Höelderlin: “Mas onde está o perigo, nasce/ Também o que salva”. Mas o menino tem um tio louco e que é também poeta e que lhe ensina que “as mulheres sabem ver o mundo e os homens, só se forem levados por uma visão”.
O poeta Floriano Martins, tendo sabido separar Logos e Melancholia e marcando seu discurso poético-filosófico no melhor estilo, não permitiu que Saturno e sua melas + kole (bílis negra), maculasse sua caminhada. As estruturas do mundo à sua volta parecem estar em irreversível processo de deterioramento. Mas o Ansioso Menino não se desespera e na sua fragilidade parece querer dizer-nos: “…é preciso que todos olhemos juntos um objetivo maior na vida”.
O autor acaba por descobrir que a Força Centrífuga que dispersou e atomizou a humanidade, precisa ser reestruturada e integrada para que confira sentido e propósito à existência. Ao contrário, o menino exposto a um universo familiar e sem limitações, poderia ser vítima de consequências inimagináveis. Mas não é o que acontece. Do tio louco e poeta e dos poucos livros que lê, aprendeu: “Não importa o que se pode ler mas, sim, o que verdadeiramente transfigura a vida. E nisso, poucos livros ajudarão. Afinal, os livros são atos essenciais de escrituras e não de leituras, a revelar que a busca desenfreada de essencialidade não passa de um distúrbio patológico, uma vez que, toda beleza é perversa”. É assustador que uma criança tenha podido captar e compreender essa afirmação do tio louco e poeta: “Duvido, comigo mesmo, ser preciso ler algum verso. Versos não têm tanta importância, que dizer então de seus autores?”
Parece-nos que o autor tenta passar um preceito unificador, pensando em potencialidade e não em possibilidade, uma vez que, unidade e diversidade são polaridades necessárias e simultâneas da mesma essência. Essa tentativa fragmentária de expressar o inexpressável, parece induzir-nos a uma constatação: “melhor afastar-se ou a capitulação posterior será inexorável”.
Como harmonizar a loucura com a normalidade do cotidiano? A novela parece transcorrer no universo da memória. Mas logo vem-nos a advertência: “Quando tudo é memória, nada mais é memória... o homem é a única catarse possível”.
Apesar de lidar com loucura, poetas e impossibilidades vitais, o estilo rico, mas seco e objetivo do autor, evidencia uma ausência, a ausência da música que, ressaltamos, parece-nos intencional. A maestria na manipulação imagética, leva-o a prescindir da intenção melopaica. Sua dicção nos conduz a uma “prosa de câmara”, acentuando com sua linguagem certo mal-estar lingüístico, presente em Kafka, Artaud e Beckett, como expressão de um mundo em ruínas onde todos os valores humanos foram ou estão sendo aniquilados, pois: “Dar pela falta dos tecidos imutáveis de que é feito cada vida, leva o mesmo e imprevisível tempo que fiá-la”.
Parece-nos que o autor quer ser uma espécie de deus! E é essa arrogância que provoca certo mal-estar: “Os poemas não passam disto: um reflexo de nossa simplicidade diante da vida. Os poetas somos todos franciscanos. (...) nossa tragédia vem de nossa abnegação. Desejamos profundamente que todos os homens sejam felizes”. Aqui acessamos um esquecimento que impede o “vir gloriosus” do autor e seus personagens: música e raiz da raça pois, como disse Kotnensky, “o ser do homem não se mantém e não floresce, se não estiver permanentemente plantado em suas raízes”.
UMA MARGEM IMPERTUBÁVEL DO SILÊNCIO - ALGUM SILÊNCIO VINDO DAS MARGENS - esses intertítulos conduzem através da iniciação sexual do Menino Ansioso. Como é de se prever, Mãe Dolores o conduz na descoberta do sexo. Ríspida, rude e objetiva ela devassa aquele mundo de inocência. Como consequência, dor e linguagem passam a conviver como expressão daquele espírito. Há qualquer coisa de artaudiano na linguagem do Menino Ansioso e sua compreensão do não-domínio da sexualidade de mãe Dolores. E a constatação: “Não há mais jeito no ser que sê-lo”.
As primeiras experiências com a dor parecem conduzi-lo por um caminho entre a complexa variedade de possibilidades e dificuldades, incapazes, no entanto, de bloquear o poder de sua mente e de seu coração. Apesar das ausências paterna e materna: “O pai viajava muito e a mãe vivia às voltas com os cuidados exigidos pelo irmão mais novo, com suas deformações genéticas”.
O Menino Ansioso - sem ignorar nenhuma faceta entre sujeito e objeto - vai moldando sua visão pessoal da vida sem separar espírito e matéria ou intuição e razão. O Pequeno Ansioso consegue romper o rito vil de mãe Dolores e depois vai com ela banhar-se no tanque de peixes do quintal, enquanto o resto da casa chora seus mortos.
ESCURIDÃO NUMINOSA - Não é só a escuridão do quartinho onde mãe Dolores o inicia, que marca sua trajetória. Filosofia, arte e ciência lhes são apresentadas na vivência familiar. Entretanto, nenhum caminho real lhe é apontado. Sua natureza é perpassada em todo o seu contexto pelos elementos vitais de suas vivências. Um novo ordenamento do conhecimento o ajuda a desvendar as analogias, propiciando-lhe a possibilidade de uma postura, mais ampla e objetiva, do sentido da vida.
Seu conhecimento não se limita às impossibilidades do tio poeta-louco, do tio poeta-burocrático, de mãe Dolores ou da sábia avó. Antes de tudo é um poderoso recurso que o vai libertar do medo, abrindo caminho para a reabilitação da sua vontade, para o renascimento da sua fé na vida e de certa confiança no amanhã. Na ruína que é sua família, consegue encontrar padrão e sistema capazes de ajudá-lo a recuperar a própria dignidade.
De alguma forma nosso Pequeno Ansioso vai conseguir deflagrar as mudanças que irão possibilitar certo aprofundamento na compreensão do universal, no entendimento e superação dos preconceitos. Sua intuição será a grande auxiliar na superação dos limites. O conhecimento irá livrá-lo da dependência do autoritarismo, comum das famílias nordestinas.

INVISÍVEIS TRILHAS - UMA ÚLTIMA CHAMA. “O livro não é nada”, e o Pequeno Ansioso é a soma de todas as inquietudes da existência humana. Não há como não retomar Mallarmé e dizer que, na literatura, pelo menos: “A dor existe para acabar em livro”.