quinta-feira, 5 de março de 2015

JOSÉ CASTELLO | Escutem seu nome

Em um poema de Floriano Martins, "Rastro", esbarro em um verso que me derruba: "- Esta é a única obra. Escutem seu nome". O poema está em O sol e as sombras (Editora Pantemporâneo, 2014), livro trabalhado em parceria com as mãos vigorosas do artista Valdir Rocha. As reproduções das gravuras em metal de Valdir são atordoantes e conferem ainda mais potência à frase que leio.
O livro se abre com uma epígrafe iluminadora do espanhol Francisco de Goya: "Na natureza existem tão poucas cores quanto linhas, só existem o sol e as sombras. Dá-me um pedaço de carvão e eu te darei o quadro mais belo". Tudo, no livro, conflui para um mergulho radical em si. Tudo conflui para o verso de Floriano - ele, também, simples e forte.
Eu o repito, para ter certeza de que ele existe: "- Esta é a única obra. Escutem seu nome". O verso vem em itálico, o que tanto pode indicar a fala de um personagem obscuro, como uma citação. Mas citação de quem? Não importa - o verso se fecha em si mesmo e nos sacode. Nos arrasta. Ele resume, de modo impactante, o segredo da própria criação.
Lembra Goya que na natureza existem poucas coisas realmente valiosas e que, por isso, devemos nos aferrar ao pouco que temos. Precisamos nos agarrar ao que somos - ao próprio nome - ou nada mais se sustenta. Essa parece ser a sina de artistas e escritores: sustentar uma assinatura. As máximas contemporâneas afirmam que "o autor morreu", mas para os artistas verdadeiros isso não passa de uma afirmação leviana.
Precipitada e perigosa, já que pode matar (ainda que metaforicamente) o que um artista é. Pode emudecer uma voz. E de que mais trata um nome senão de uma voz que nos designa? Que nos devolve a nós mesmos? Ter um nome - o que é muito diferente de ter uma identidade renomada -: eis tudo o que um artista quer. Tudo o que um artista (um escritor) persegue. Tudo o que o mantém respirando.
O mesmo poema, "Rastro", abre com outros versos fortes: "O lugar de ser de cada letra,/ a oração convertida em pérola/ que nos decifra em fatias". A palavra pérola - eis o nome, ao que só se chega depois de um longo percurso de volta a si. Voltar a si é muito mais difícil do que avançar, ou transformar-se. Em outras palavras: para um artista, voltar a si é o verdadeiro avanço, é a verdadeira transformação.
Transformar-se em si mesmo _ o que parece simples é o mais difícil. Ainda Floriano: "O mundo é uma fábula,/ até que nos descobrimos/ o personagem de sua saga". O personagem de si mesmo. Ao lado do poema, um imenso rosto, com os olhos arregalados, nos encara. Figura, mais do que nunca, silenciosa. Seus olhos bastam.
A arte de Valdir Rocha dialoga em silêncio com as palavras do poeta. Esse olhar intenso e imenso, voltado mais para dentro do que para fora, é aquele que um artista abre para, enfim, chegar a si mesmo. Refere-se, ainda, ao espanto que todo artista experimenta quando, depois de muita luta, chega ao próprio nome.

O SOL E AS SOMBRAS, de Valdir Rocha e Floriano Martins 
[Resenha de José Castello, O Globo, RJ]