quarta-feira, 16 de novembro de 2016

ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO | Cruzeiro Seixas: as cartas do rei Artur


O poeta brasileiro Floriano Martins acabou de organizar e publicar um livro de Cruzeiro Seixas, Confissões de um espelho (Fortaleza, Agulha, 2016, pp. 188), cujo núcleo são 45 cartas ao organizador, escritas entre Setembro de 2003 e Novembro de 2015. Floriano Martins fora já editor de Cruzeiro Seixas em 2005 com Homenagem à Realidade (São Paulo, Escrituras).
O novo livro é peça digna de nota, desde logo pela importância das cartas de Cruzeiro Seixas, as primeiras deste autor que se publicam em livro. São cartas longas, recheadas de afirmações aforísticas, de boa valia para conhecer quanto o português pode ser desconcertante na escrita como nos desenhos que elegeu como a sua primeira e mais importante forma de expressão. Numa carta de 2006 diz: “Eu nunca coloquei nada na net, tornando-se insuportável para mim navegar sem água.” Numa outra, de 2015, deixa esta indicação: “Creio que a pintura entendida como a entenderam Velásquez ou os impressionistas acabou.” Em duas outras faz questão de se afirmar um alcoforadista intransigente e apaixonado. “Mariana Alcoforado que amo mais do que o Chamilly”, diz ele.
As cartas são complementadas por várias entrevistas, depoimentos internacionais – são notáveis os textos de Sarane Alexandrian e de Franklin Rosemont – e até uma antologia de 12 desenhos e 12 poemas, que revelam o convívio apaixonado do organizador com a obra do seu autor. O conjunto é doravante indispensável para se conhecer Cruzeiro Seixas e até para abordar alguns dos sulcos maiores e menores que o surrealismo gravou de forma indelével em Portugal e no Brasil.
Foi Mário Cesariny que peneirou o surrealismo português até obter esta síntese (As mãos na água a cabeça no mar, 1985: 272): Fundamentalmente [no surrealismo português], tratar-se-ia de três posições que, convergindo, divergem: o Amor-Mágico e Extra-Mundo, de António Maria Lisboa; o “Amor, Amor Humano”, amor “que nos devolve tudo o que perdêssemos”, de Mário Cesariny de Vasconcelos; a impossibilidade de Amor, ou a Abjecção de Pedro Oom do Vale. Estes os três motores sempre presentes (…); em vão se procurará no surrealismo português chaves muito diversas destas “três penas capitais”.
Não fica mal juntar hoje a estes três nomes e posições o nome e a posição de Cruzeiro Seixas. O amor solar, estival e alucinado, foi o caminho e o sinal da sua vida e da sua criação; os seus desenhos são uma selva de emaranhados e admiráveis símbolos sexuais e a sua vida, que elegeu por estrela condutora Mariana Alcoforado, aspirou a ser o elogio da paixão escaldante.
Aos três mundos do surrealismo português apontados por Mário Cesariny, é de justiça acrescentar o mundo de Cruzeiro Seixas, que este seu epistolário com Floriano Martins nos ajuda a conhecer por dentro e a perceber mais próximo do Extra-Mundo de Lisboa, e até do Amor Humano de Cesariny, que da Abjecção de Oom, não obstante a leal Amizade que desde a adolescência na escola António Arroio uniu o autor de “Um ontem cão” e aquele que um Mário Cesariny com poderes especiais para nobilitar os seus pares nomeou “Rei Artur”.



__________ 
SEIXAS, Cruzeiro: Confissões de um espelho. Fortaleza: ARC Edições, 2016.

Visite a nossa loja: http://abraxasloja.blogspot.com.br/2015/04/em-silencio.html.