O fazer
artístico que envolve deslocar imagens de seu contexto original para um novo,
mudando seu significado, chama-se collage. O termo collage refere-se
a este quebra-cabeça de imagens ora justapostas, sobrepostas, isoladas,
resultando numa atração de tal força que elas acabam se grudando mesmo que não
haja cola. A trama de significados, neste caso, funciona como cola. Este jogo
de analogia entre imagens provém de longa data, de várias manifestações
artísticas e caseiras, mas é no Cubismo, no Dadaísmo e principalmente no
Surrealismo, que se encontra em maior extensão. Produzir collage muito
se assemelha a produzir sonhos. Ambos trabalham com fragmentos, interrupções,
cortes, deslocamentos, elementos desconexos, alegóricos, simbólicos. Justamente
por deter estas características, a arte surrealista acabou por ampliar o termo collage.
Desconfio, apesar de não ser poeta, que há um grande parentesco entre fazer collage e
fazer poesia.
Floriano Martins se diverte, leva a sério esta brincadeira de fazer collage a
ponto de nos chamar para um passeio por suas trilhas. Tudo começa no primeiro
encontro, que pode ser a primeira vista, ou não, mas acredito que o encontro
acontece quando você para, olha, observa, vê e conclui que estas collages deixam
seus olhos irrequietos, intrigados, não se dando por satisfeitos. Tem alguma
coisa de estranho por aqui, poderiam eles dizer. Deixe-me ver. E assim, o olhar
vai se aprofundando, mergulhando na collage e, pronto, fomos
fisgados. É isso mesmo o que acontece. Estas imagens elaboradas por Floriano
Martins precisam ser completadas por nossos olhos, e para isso, nos exigem mais
do que o olhar. Necessitamos ver, ver além do óbvio. Deste convite instigante,
desafiador, resulta um fascinante quebra-cabeça que através da junção de fragmentos,
desencadeia um novo simbolismo: decifra-me ou te devoro.
Há algum tempo acompanho as produções artísticas de Floriano Martins,
quer seja na poesia, nos ensaios ou, mais profundamente, nas collages. Posso
dizer que a grande maioria delas trazem imagens de livros, escrituras. Nada
mais coerente e sincero, se consideramos a veia poética deste artista, e o fato
dele confirmar que a quase totalidade de seus trabalhos com a collage se
dá em função de sua poesia, do diálogo com ela, mesmo que se trate de capa de
livro de ensaios ou de outros poetas.
Nesta série em especial, Rasuramore, vejo que os livros
incorporam uma aura que, por sua vez, cria um ambiente sacro. Percebo seres
centrais que evocam presença religiosa, humana e mitológica. O todo emana: escritos
sagrados.
Em Rasuramore I encontra-se uma figura central que nos
conduz à religiosidade, devido ao seu manto, à postura corporal, ajoelhada e à
dinâmica do papel que voa evidenciando uma atmosfera suave. Acredito que para
Floriano o ato de escrever seja mesmo uma religião, assim como o encontro no
poema-livro Sábias areias, que tem todo um ritmo de leitura
semelhante às rezas.
Rasuramore II nos
traz um homem posicionado de tal maneira que mais parece o próprio habitante do
livro ao qual está sobreposto, o que por si já faz uma analogia direta às mãos
que, a meu ver, também são partes sacras do corpo humano. Olhando mais
profundamente para a figura "homem-livro-mãos", vejo que entre estes
elementos há uma dinâmica redundante, quase que circular, resultando num todo
sem fim. Sendo assim, o olho dirige-se primeiramente para a cabeça do homem,
que segura uma haste, que se junta à mão esquerda, que segura o livro, que
segura o homem, que carrega a haste, que se junta à mão esquerda etc. Ao fundo,
mais no canto superior direito, há uma representação que se assemelha a uma
montanha, fazendo com que a figura "homem-livro-mãos" transporte-se
para o primeiro plano da collage, em uma situação espacial que parece
flutuar. Esta montanha ao fundo pode significar pilha, montanha de livros que
nos dá margem para saltarmos à escada de livros em Rasuramore III. Esta
escada, por sua vez, funciona como caminho certo, guiando-nos a caminho da
terceira collage.
Aqui, o elemento central é um livro totalmente aberto, exposto, sendo
segurado por uma mitológica figura feminina, posicionada sobre os livros que
lhe servem de pedestal. Como é interessante perceber o olho passeando por esta collage!
Vejo primeiramente a escada de livros que convida para o passeio. Mais adiante
encontro as vestes da Vênus, logo após seu corpo, seu rosto a contemplar o
livro que segura. Sim, cheguei ao livro, elemento central, aberto de tal
maneira que nos invade de curiosidade, convidando-nos à leitura. Aqui podemos
ficar o tempo que quisermos, deleitando-nos com as mais variadas histórias.
Caso não nos percamos dentro do livro conseguiremos prosseguir o passeio
seguindo pelo manto da Vênus, que se esparrama pela escada de livros, e parece
nos dizer: "a saída é por aqui".
Partindo da observação de como Floriano Martins dispôs as figuras
centrais na série Rasuramore, sendo elas respectivamente religiosa,
humana e mitológica, é possível concluir que há evidências de que os livros
sejam a morada delas. É como se, caso eu quisesse conhecer melhor uma destas
figuras, com certeza as encontraria nos livros.
Acredito que Floriano Martins tem suas collages como
iscas, que acabam por nos fisgar, levando-nos para o prato principal deste
artista, ou seja, sua poesia, seus poemas. A ideia que tenho é que acabamos por
ser jogados numa viagem insólita, onírica, artimanha típica de quem é poeta de
vertente surrealista.
[Publicação original na Agulha Revista de Cultura # 6, agosto de 2000]