Caro amigo, já estava
pra lá de encabulada por não enviar as anotações da novela, acho que elas são
bem pessoais, e não servem exatamente para nada. Estavam manuscritas e eu sem
tempo de colocá-las por aqui, mas como você pediu que fizesse por via
eletrônica, assim será. Tomei a liberdade de identificar as partes como
capítulos, mas só para facilitar o entendimento.
Primeiro, uma
curiosidade que me fez sorrir: quando me falou por e-mail sobre a novela,
falou-me que se tratava da relação de um menino de 13 anos com “um rio louco”
(quando li vi que era um tio) e aí comecei a pensar numa perspectiva muito mais
do Guimarães Rosa do que de qualquer outro (risos)
Vamos às anotações:
Antes, preciso dizer
que, ao concluir a leitura do texto, pensei em falar contigo do R. Barthes,
“O texto aborda-se,
experimenta-se em relação ao signo. A obra fecha-se sobre um significado.
Podemos atribuir este significado a dois modos de significação: ou o
pretendemos aparente, e a obra é então objeto de uma ciência da letra, que é a
filologia; ou esse significado é reputado secreto, último, é preciso
procurá-lo, e a obra releva então de hermenêutica, de uma interpretação
(marxista, psicanalista, temática etc.)...” ([p.57], O Rumor da Língua)
Considero a novela
como um texto de significados implícitos. Talvez o procedimento mais adequado
esteja na “procura” de significados específicos, que “de par em par” alavancam
a ideia central do texto. E você não facilitou: “nenhum acesso do que se é
chega a explicar o que se alcança...” (rindo). Mas vou por alguns indícios, e
talvez consiga sugerir alguma coisa plausível.
Na parte 1 ("Céus
remotos") uma família começa a ser apresentada ao leitor e esta composição
se estende pelos demais capítulos. Esta apresentação vem, na maior parte das
vezes, em forma de considerações dos/sobre os personagens quanto a vida,
reflexões extraídas de vivências conflituosas, muitas vezes traumáticas. Uma
família mergulhada em dor, é o que passa. Interessante também é que não somente
os personagens “falam”, os espaços também, através de analogias, as mais
originais. Só para exemplificar: “as portas” [p.12].
A mulher no texto.
Talvez esteja aqui uma coisa difícil de dizer. Mas me deu a impressão que há
uma depreciação dos papéis femininos, mostram-se sempre sem vida própria, vivem
“em função de”. A intenção era essa mesmo? Veja: Tio Eudoro fala que a mulher é
a “antífrase da razão”; Alfredo Aquilino reporta-se à mulher como aquela que
tem visão, mas que a ação cabe ao homem; a esposa de Anselmo Calamares,
Adelaide, tem “amigas emplumadas e ridículas”, é a “confusa Adelaide”. A
enfermeira Firmina é “a tonta, tão adorável”. Para completar a visão machista,
aristocrática e burguesa da família, Anselmo diz: “ Não procurarei mulheres
entre músicos ou qualquer tipo de círculo de vagabundos”. Claro está que não é
a tua visão, talvez uma construção que assegura a crise porque passa a família.
Não sei…
O piano aparece no
primeiro capítulo e acompanha o enredo de toda a trama. A analogia entre o piano
e o “dragão sempre dormindo” é ótima! Interessa ver também que há um recurso à
ideia de uma existência real e de uma imagem. O que guarda mais o piano? “as
ondulações sonoras da vida” [p.46] – é
isto? acho que sim.
O conflito entre
Anselmo e Alfredo, este último, uma veia poética usurpada. Um disfarce, uma
desculpa, para as longas conversas entre Pequeno Ansioso e o seu Tio, uma
maneira inteligente de tecer comentários muitas vezes mordazes sobre o
comportamento humano. Alfredo e Anselmo: uma disputa insana. Um resultado
insano?
Alfredo
acusa Anselmo de “traçar um círculo ao seu redor”. Veja: percebo nas pp. 22 e
28 uma identidade no “diálogo” entre Pequeno Ansioso com o seu Tio Alfredo e
depois entre ele e a Mãe Dolores (a empregada espírita). Parece-me que de certa
forma o “traçar um círculo” é uma característica bem humana que foi assinalada
para um dos personagens, mas serve a quase todos. Esta é uma atitude que muitas
vezes assinala um caráter defensivo.
No
capítulo 2 ("Uma margem insuportável do silêncio")
Veja
estas passagens: “Pequeno Ansioso, ainda sem o saber, mostrava-se aplicado na
maior das lições: deixar que tudo seja e desapareça” [p.26]; “Acho que o
artista acaba por destruir tudo o que cria” [p. 28]; “A plenitude é feita de
uma exímia sequência de abandonos” [p. 30]. São indícios de um sofrimento
quanto à perda e de uma terapêutica voltada para a superação que, muitas vezes,
consiste na agressão do próprio sentimento.
Uma
constante também é a referência a inquietude, ao acaso, a presença da morte, e,
claro a Deus: “Leva tudo consigo e nos põe a viver de espanto” [p.28].
Impressionante!!!! Este Deus, que retira, extrai, só deixa sobras, contraria a
ideia de um Deus misericordioso. Esta é sem dúvida uma questão pra lá de
instigante, atraente. Vejo também este componente em outro livro teu, Alma em Chamas, “É possível que Deus
haja morrido de sua fome infinita” [p.169] … Estou certa? Nessa mesma medida: “a
busca desenfreada da essencialidade é um distúrbio patológico” [p.18].
A descoberta sexual de
Pequeno Ansioso com Dolores, mesclado com a crença da moça, torna toda a
experiência traumática e, em certo sentido, trágica, em seu desfecho. A moça é
sarcástica aqui: “O que esperavas? A hóstia consagrada?” [p.34]. Um ato humano
plausível de redenção? Talvez seja a ideia, uma brincadeira com o leitor.
No capítulo 3 ("Algum
silêncio vindo das margens")
Há aqui uma reflexão
de Pequeno Ansioso: “Tenho crescido em um mundo enevoado, onde êxtase e
tragédia tendem a confundir-se.” Sem
dúvida, essa é uma questão central no texto.
A ausência paterna
fica agora melhor registada, e pareceu-me, que o tio Alfredo assume para o
menino uma espécie de identidade masculina/paterna, necessária em sua tenra
idade.
O Pequeno Ansioso vive
em meio à crise familiar; as ausências do pai e da mãe e um conflito interno
que acentua-se com as reflexões do tio Alfredo: “Não há mais jeito no ser que
sê-lo” [p.37]; “Recusava-se a aceitar que a vontade de ser não passava de um
elemento apedrejado pelo acaso” [p.38]; “Minha vontade de ser treinava com o
imprevisível e o improvável” [p.38].
O capítulo 4 ("Escuridão
numinosa")
As anotações de
Pequeno Ansioso das reflexões do tio Alfredo dizem respeito à fragilidade da
condição humana: “um ogro errante ou matuto cheio de si”… é também uma passagem
belíssima do texto.
Outra referência: as
famílias e as suas pistas. Não se apaga nada, somos marcados demais pelo
percurso familiar.
O capítulo 5 ("Invisíveis
trilhas")
A avó como ponte “que
não soube ir de um canto a outro de si mesma...” ou assim “A Avó sempre foi uma
ponte entre a realidade o desastre existencial da família”. Ciente do engodo
poético havido na família, mas se calava. Pressa na teia familiar.
De novo aparece a
figura paterna, só que desta vez com muito mais dor “Não creio que pensasse em
mim. Na verdade jamais trocamos uma única palavra” [p.59].
Por fim, mãe – mulher
– Deus – livros… panteísmo: analogias de tormento, mas também de identificação.
Pronto?
Claro que não. Desculpe-me pelas falhas interpretativas, minha limitação na tua
área faz com que saia assim. Mas como você pediu… depois falamos então. Já
falei mas vou repetir: adorei ler o texto.
Grande abraço,
Fátima Pires
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