Já a partir do título da novela (novela?)
firma-se uma certa arrogância que nos segue por todas as páginas. Na descrição
dos sacrifícios, perversões e abandonos, persiste o sentimento de arrogância.
Irrita-me, confesso, o viés com que o autor contempla o mundo.
É sumamente perigoso
para qualquer poeta ter seu mundo de inocência violado. É que o poeta ao ser
contemplado com o epós, ganha uma parte de DEUS mas, também, uma do Diabo para faire pendant. É quando, então, ele
revela seu lado mais blasé. Rimbaud
ao ter sua inocência violada, transformou-se num contrabandista. Que fosse seres
humanos sua mercadoria, pouco lhe importava.
Afinal, não tinham
violado o seu universo de inocência? Então, agora que o aguentassem; Höelderlin
não suportando a violência e agressividade do mundo à sua volta, escapou pela
loucura. Divina loucura! Diria meu velho mestre, Casais Monteiro.
O poeta tem de ser
deixado in-nocens para que possa
incorporar seu texto à poesia e possa dar a cada palavra seu próprio som e ao
texto sua própria sintaxe. O amargor que no intertítulo CÉUS REMOTOS o tio
Eudoro Antunes destila: “Sonhei tanto com
alguma mínima forma de transcendência”, deixa-nos a imaginar que,
possivelmente, a brutal franqueza de mãe Dolores e suas atitudes, tenham
causado estragos irreversíveis no universo do Pequeno Ansioso.
A morte do tio Eudoro
embaralhou-lhe a vida. Afinal, “um morto
nunca morre em si”. Mas, divertir-se enganado pelo bisavô, ainda que este
lesse François Villon? É então quando a escatologia rola solta ou seria a
coprofilia?
O lugar comum desgastou
as conexões vocabulares. Por isso mesmo, o poeta brinca de novela e escande às
gargalhadas as mais torpes figuras de expressão: “o que somos é o que existe ou
o que desejamos?” O chato mesmo é que “só a infelicidade quer dormir com Deus!”
A percepção consciente
de todos os fragmentos, todos os detalhes e açoitado pelo derrame de imagens:
“vereda que levava a lugar nenhum”, e o grande aprendizado com o tio: “...não
há réstia de cor ou fragmento de luz que não traga em si a chave de toda a
paleta”. Todos sabemos as feridas que os fantasmas românticos abrem em nossos
peitos - diz Jorge Lúcio de Campos - a nos lembrar de Höelderlin: “Mas onde
está o perigo, nasce/ Também o que salva”. Mas o menino tem um tio louco e que
é também poeta e que lhe ensina que “as mulheres sabem ver o mundo e os homens,
só se forem levados por uma visão”.
O poeta Floriano
Martins, tendo sabido separar Logos e Melancholia e marcando seu discurso poético-filosófico
no melhor estilo, não permitiu que Saturno e sua melas + kole (bílis negra), maculasse sua caminhada. As estruturas
do mundo à sua volta parecem estar em irreversível processo de deterioramento.
Mas o Ansioso Menino não se desespera e na sua fragilidade parece querer
dizer-nos: “…é preciso que todos olhemos juntos um objetivo maior na vida”.
O autor acaba por
descobrir que a Força Centrífuga que dispersou e atomizou a humanidade, precisa
ser reestruturada e integrada para que confira sentido e propósito à
existência. Ao contrário, o menino exposto a um universo familiar e sem
limitações, poderia ser vítima de consequências inimagináveis. Mas não é o que
acontece. Do tio louco e poeta e dos poucos livros que lê, aprendeu: “Não
importa o que se pode ler mas, sim, o que verdadeiramente transfigura a vida. E
nisso, poucos livros ajudarão. Afinal, os livros são atos essenciais de
escrituras e não de leituras, a revelar que a busca desenfreada de
essencialidade não passa de um distúrbio patológico, uma vez que, toda beleza é
perversa”. É assustador que uma criança tenha podido captar e compreender essa
afirmação do tio louco e poeta: “Duvido, comigo mesmo, ser preciso ler algum
verso. Versos não têm tanta importância, que dizer então de seus autores?”
Parece-nos que o autor
tenta passar um preceito unificador, pensando em potencialidade e não em
possibilidade, uma vez que, unidade e diversidade são polaridades necessárias e
simultâneas da mesma essência. Essa tentativa fragmentária de expressar o inexpressável,
parece induzir-nos a uma constatação: “melhor
afastar-se ou a capitulação posterior será inexorável”.
Como harmonizar a
loucura com a normalidade do cotidiano? A novela parece transcorrer no universo
da memória. Mas logo vem-nos a advertência: “Quando tudo é memória, nada mais é memória... o homem é a única catarse
possível”.
Apesar de lidar com
loucura, poetas e impossibilidades vitais, o estilo rico, mas seco e objetivo
do autor, evidencia uma ausência, a ausência da música que, ressaltamos, parece-nos
intencional. A maestria na manipulação imagética, leva-o a prescindir da
intenção melopaica. Sua dicção nos conduz a uma “prosa de câmara”, acentuando
com sua linguagem certo mal-estar lingüístico, presente em Kafka, Artaud e
Beckett, como expressão de um mundo em ruínas onde todos os valores humanos
foram ou estão sendo aniquilados, pois: “Dar pela falta dos tecidos imutáveis
de que é feito cada vida, leva o mesmo e imprevisível tempo que fiá-la”.
Parece-nos que o autor
quer ser uma espécie de deus! E é essa arrogância que provoca certo mal-estar:
“Os poemas não passam disto: um reflexo de nossa simplicidade diante da vida.
Os poetas somos todos franciscanos. (...) nossa tragédia vem de nossa
abnegação. Desejamos profundamente que todos os homens sejam felizes”. Aqui
acessamos um esquecimento que impede o “vir gloriosus” do autor e seus
personagens: música e raiz da raça pois, como disse Kotnensky, “o ser do homem
não se mantém e não floresce, se não estiver permanentemente plantado em suas
raízes”.
UMA MARGEM IMPERTUBÁVEL
DO SILÊNCIO - ALGUM SILÊNCIO VINDO DAS MARGENS - esses intertítulos conduzem
através da iniciação sexual do Menino Ansioso. Como é de se prever, Mãe Dolores
o conduz na descoberta do sexo. Ríspida, rude e objetiva ela devassa aquele mundo
de inocência. Como consequência, dor e linguagem passam a conviver como
expressão daquele espírito. Há qualquer coisa de artaudiano na linguagem do
Menino Ansioso e sua compreensão do não-domínio da sexualidade de mãe Dolores.
E a constatação: “Não há mais jeito no ser que sê-lo”.
As primeiras
experiências com a dor parecem conduzi-lo por um caminho entre a complexa
variedade de possibilidades e dificuldades, incapazes, no entanto, de bloquear
o poder de sua mente e de seu coração. Apesar das ausências paterna e materna:
“O pai viajava muito e a mãe vivia às voltas com os cuidados exigidos pelo
irmão mais novo, com suas deformações genéticas”.
O Menino Ansioso - sem
ignorar nenhuma faceta entre sujeito e objeto - vai moldando sua visão pessoal
da vida sem separar espírito e matéria ou intuição e razão. O Pequeno Ansioso
consegue romper o rito vil de mãe Dolores e depois vai com ela banhar-se no
tanque de peixes do quintal, enquanto o resto da casa chora seus mortos.
ESCURIDÃO NUMINOSA - Não
é só a escuridão do quartinho onde mãe Dolores o inicia, que marca sua
trajetória. Filosofia, arte e ciência lhes são apresentadas na vivência
familiar. Entretanto, nenhum caminho real lhe é apontado. Sua natureza é
perpassada em todo o seu contexto pelos elementos vitais de suas vivências. Um
novo ordenamento do conhecimento o ajuda a desvendar as analogias,
propiciando-lhe a possibilidade de uma postura, mais ampla e objetiva, do
sentido da vida.
Seu conhecimento não se
limita às impossibilidades do tio poeta-louco, do tio poeta-burocrático, de mãe
Dolores ou da sábia avó. Antes de tudo é um poderoso recurso que o vai libertar
do medo, abrindo caminho para a reabilitação da sua vontade, para o
renascimento da sua fé na vida e de certa confiança no amanhã. Na ruína que é
sua família, consegue encontrar padrão e sistema capazes de ajudá-lo a
recuperar a própria dignidade.
De alguma forma nosso
Pequeno Ansioso vai conseguir deflagrar as mudanças que irão possibilitar certo
aprofundamento na compreensão do universal, no entendimento e superação dos
preconceitos. Sua intuição será a grande auxiliar na superação dos limites. O
conhecimento irá livrá-lo da dependência do autoritarismo, comum das famílias
nordestinas.
INVISÍVEIS TRILHAS - UMA
ÚLTIMA CHAMA. “O livro não é nada”, e o Pequeno Ansioso é a soma de todas as
inquietudes da existência humana. Não há como não retomar Mallarmé e dizer que,
na literatura, pelo menos: “A dor existe para acabar em livro”.
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