Criado por André Breton (1896-1966) e outros
poetas em Paris na década de 20, o Surrealismo logo deixou as fronteiras
francesas para alcançar adeptos em todo o mundo. Porque não era uma nova
linguagem a ser combatida ou aceita, o movimento propunha, isso sim, um
questionamento das linguagens que se apresentavam como irredutíveis. Era também
uma tentativa de converter a poesia em bem comum, mas, acima de tudo, uma
manifestação do inconsciente e, por isso, conquistou tantos seguidores, alguns
que nem mesmo seriam aceitos pelo novo corifeu.
Para mapear a influência
do Surrealismo na poesia do continente americano, o poeta Floriano Martins
decidiu, além de fazer um estudo introdutório, reunir os nomes mais representativos
que se deixaram influenciar pelo movimento em suas produções. E produziu Un
nuevo continente: antología del Surrealismo en la poesía de Nuestra América,
lançado em 2004 pela Ediciones Andrómeda, de San José da Costa Rica.
Nascido em Fortaleza, Ceará,
em 1957, onde reside, Floriano Martins é poeta, ensaísta, tradutor e editor,
mas especialmente tem se dedicado a estudar a literatura hispano-americana,
sobretudo em relação à poesia. É autor de Escritura
Conquistada (Diálogos con poetas latinoamericanos), de 1998, e El inicio
de la búsqueda (El Surrealismo en la poesía de América Latina), de 2001.
Em 1998, publicou traduções de Poemas de amor, de Federico
García Lorca, e Delito por bailar chá-chá-chá, de Guillermo Cabera
Infante, seguidas de Dos poetas
cubanos, de Jorge Rodríguez Padrón, de 1999, Tres entradas para Puerto
Rico, de José Luis Vega, de 2000, e La novena generación, de Alfonso
Peña, de 2000. Publicou
ainda as obras de poesia Alma em chamas (1998), Cenizas del sol
(2001), Extravío de noches (2001) e Estudos de pele (2004).
Alma irrequieta, Martins
ainda encontra tempo para editar, juntamente com o poeta Claudio Willer, de São
Paulo, a revista eletrônica Agulha (www.revista.agulha.nom.br),
coordenar o projeto “Banda Hispânica” do Jornal de Poesia e ainda
dirigir, em colaboração com Maria Estela Guedes, o dossiê surrealista “Poesia e
Liberdade” na revista eletrônica TriploV, de Portugal.
Como ensaísta fez, em
novembro de 2003, na Academia Brasileira de Letras, a conferência “O
Surrealismo no Brasil”, que acaba de sair no segundo tomo de Escolas
Literárias do Brasil, edição em dois volumes coordenada pelo poeta Ivan
Junqueira, presidente da instituição. O texto é, sem dúvida, aquele que mais bem
situa historicamente a presença do Surrealismo em terras brasileiras.
Diz Martins que o
Surrealismo penetrou na cultura brasileira “de forma indireta, tendo como
pontos de costura tanto as afirmações de Flávio de Carvalho, Jorge de Lima,
Aníbal Machado, como as simpatias de Pagu e Murilo Mendes e posteriormente a
participação mais estranhável de Maria Martins”. Oficialmente, porém, o
Surrealismo chega ao Brasil em 1965, com o estabelecimento de um grupo
surrealista em São Paulo, capitaneado por Sérgio Lima, que aderira ao grupo
parisiense em 1961, quando de sua residência na França.
À mesma época, já havia
em São Paulo um grupo de poetas interessados no que ocorria na América do
Norte, especialmente pela movimentação poética da beat generation e pela
contracultura. Estavam assim, por extensão, afinados com o Surrealismo, porque
a beat generation havia se deixado impregnar pelos valores surrealistas,
ainda que André Breton nunca houvesse de reconhecer isso.
Esses poetas de São
Paulo, como Allen Ginsberg, Burroughs e Jack Kerouac nos Estados Unidos, também
nunca integrariam oficialmente o grupo surrealista de Sérgio Lima: Claudio
Willer e Roberto Piva. A razão do impedimento da adesão formal de ambos ao
Surrealismo, diz Martins, “ambientava certa reserva da parte do próprio Breton
em aceitar desdobramentos do Surrealismo”, de que poderiam ser exemplos tanto o
abstracionismo como a geração beat e a contracultura.
Ao fazer essa
reconstituição histórica do que foi a influência do Surrealismo no Brasil,
Martins escolheu exatamente poemas de Sérgio Lima, Claudio Willer e Roberto
Piva para representar o Brasil em sua antologia. Willer é com Martins co-editor
da revista eletrônica Agulha, mas em sua escolha não há nenhum laivo de
compadrio ou amizade: Willer é mesmo uma das vozes mais representativas de um
tipo de poesia que, no Brasil, sempre foi marginalizada, pouco estudada na
academia, talvez porque ligada à contracultura, mas que, finalmente, começa a
ser reconhecida exatamente por sua alta qualidade literária, por suas imagens
às vezes extravagantes, mas essencialmente poéticas.
No continente americano,
diz Martins em seu estudo introdutório “Surrealismo: un cadáver extranho de
la poesía como bien común”, a aventura surrealista tem mantido uma relação
clara com forças antagônicas — a magia e o positivismo —, lembrando que, se tem
dialogado intensamente com a primeira, sempre se colocou visceralmente contra
as argumentações conservadoras que mais se assemelham a imposições. De fato, a
idéia do Surrealismo de escrita automática gerou grandes reações por parte
daqueles que se agarravam à razão cartesiana tanto à esquerda como à direita do
espectro político.
Martins reconhece que
fazer uma antologia não passa de uma viagem por um universo de sugestões.
Escolheu trinta poetas e todas as suas escolhas foram acertadas, ainda que
grandes poetas possam ter ficado no esquecimento. Mas esse é o risco de toda
antologia.
Entre os poetas
escolhidos, além dos brasileiros, os argentinos Aldo Pellegrini e Enrique
Molina, o peruano César Moro, o costarriquenho Max Jiménez e o dominicano
Freddy Gatón Arce valem a viagem, embora o mais especial seja mesmo o
martinicano Aimé Césaire, que fez das descobertas do Surrealismo o caminho para
a negritude, tendo se utilizado de uma técnica européia para o seu reencontro
com a cultura africana.
Além de Césaire, o
norte-americano Philip Lamantia e os canadenses Roland Giguère e Paul-Marie
Lapointe e o haitiano Clément Magloire Saint-Aude completam uma lista
basicamente de latino-americanos, que ainda inclui os chilenos Rosamel del
Valle, Braulio Arenas, Teofilo Cid, Enrique Gómez-Correa e Ludwig Zeller, o
peruano Emilio Adolfo Westphalen, o equatoriano César Dávila Andrade, os
argentinos Olga Orozco, Francisco Madariaga, Julio Llinás e Alejandro Puga, a
costarriquenha Eunice Odio, os venezuelanos Juan Sánchez Peláez, José Lira Sosa
e Juan Calzadilla, o cubano Lorenzo García Vega e o colombiano Raúl Henao.
Esperamos, agora, que Floriano Martins faça a versão da antologia para o
português.
[2005]
[Adelto Gonçalves é doutor em Literatura
Portuguesa e mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e
Hispano-americana pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um
Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona
Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil,
2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003).]
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