quarta-feira, 10 de setembro de 2014

ADELTO GONÇALVES | Viagem ao Surrealismo americano



Criado por André Breton (1896-1966) e outros poetas em Paris na década de 20, o Surrealismo logo deixou as fronteiras francesas para alcançar adeptos em todo o mundo. Porque não era uma nova linguagem a ser combatida ou aceita, o movimento propunha, isso sim, um questionamento das linguagens que se apresentavam como irredutíveis. Era também uma tentativa de converter a poesia em bem comum, mas, acima de tudo, uma manifestação do inconsciente e, por isso, conquistou tantos seguidores, alguns que nem mesmo seriam aceitos pelo novo corifeu.
Para mapear a influência do Surrealismo na poesia do continente americano, o poeta Floriano Martins decidiu, além de fazer um estudo introdutório, reunir os nomes mais representativos que se deixaram influenciar pelo movimento em suas produções. E produziu Un nuevo continente: antología del Surrealismo en la poesía de Nuestra América, lançado em 2004 pela Ediciones Andrómeda, de San José da Costa Rica.
Nascido em Fortaleza, Ceará, em 1957, onde reside, Floriano Martins é poeta, ensaísta, tradutor e editor, mas especialmente tem se dedicado a estudar a literatura hispano-americana, sobretudo em relação à poesia. É autor de Escritura Conquistada (Diálogos con poetas latinoamericanos), de 1998, e El inicio de la búsqueda (El Surrealismo en la poesía de América Latina), de 2001.
Em 1998, publicou traduções de Poemas de amor, de Federico García Lorca, e Delito por bailar chá-chá-chá, de Guillermo Cabera Infante, seguidas  de Dos poetas cubanos, de Jorge Rodríguez Padrón, de 1999, Tres entradas para Puerto Rico, de José Luis Vega, de 2000, e La novena generación, de Alfonso Peña, de 2000. Publicou ainda as obras de poesia Alma em chamas (1998), Cenizas del sol (2001), Extravío de noches (2001) e Estudos de pele (2004).
Alma irrequieta, Martins ainda encontra tempo para editar, juntamente com o poeta Claudio Willer, de São Paulo, a revista eletrônica Agulha (www.revista.agulha.nom.br), coordenar o projeto “Banda Hispânica” do Jornal de Poesia e ainda dirigir, em colaboração com Maria Estela Guedes, o dossiê surrealista “Poesia e Liberdade” na revista eletrônica TriploV, de Portugal.
Como ensaísta fez, em novembro de 2003, na Academia Brasileira de Letras, a conferência “O Surrealismo no Brasil”, que acaba de sair no segundo tomo de Escolas Literárias do Brasil, edição em dois volumes coordenada pelo poeta Ivan Junqueira, presidente da instituição. O texto é, sem dúvida, aquele que mais bem situa historicamente a presença do Surrealismo em terras brasileiras.
Diz Martins que o Surrealismo penetrou na cultura brasileira “de forma indireta, tendo como pontos de costura tanto as afirmações de Flávio de Carvalho, Jorge de Lima, Aníbal Machado, como as simpatias de Pagu e Murilo Mendes e posteriormente a participação mais estranhável de Maria Martins”. Oficialmente, porém, o Surrealismo chega ao Brasil em 1965, com o estabelecimento de um grupo surrealista em São Paulo, capitaneado por Sérgio Lima, que aderira ao grupo parisiense em 1961, quando de sua residência na França.
À mesma época, já havia em São Paulo um grupo de poetas interessados no que ocorria na América do Norte, especialmente pela movimentação poética da beat generation e pela contracultura. Estavam assim, por extensão, afinados com o Surrealismo, porque a beat generation havia se deixado impregnar pelos valores surrealistas, ainda que André Breton nunca houvesse de reconhecer isso.
Esses poetas de São Paulo, como Allen Ginsberg, Burroughs e Jack Kerouac nos Estados Unidos, também nunca integrariam oficialmente o grupo surrealista de Sérgio Lima: Claudio Willer e Roberto Piva. A razão do impedimento da adesão formal de ambos ao Surrealismo, diz Martins, “ambientava certa reserva da parte do próprio Breton em aceitar desdobramentos do Surrealismo”, de que poderiam ser exemplos tanto o abstracionismo como a geração beat e a contracultura.
Ao fazer essa reconstituição histórica do que foi a influência do Surrealismo no Brasil, Martins escolheu exatamente poemas de Sérgio Lima, Claudio Willer e Roberto Piva para representar o Brasil em sua antologia. Willer é com Martins co-editor da revista eletrônica Agulha, mas em sua escolha não há nenhum laivo de compadrio ou amizade: Willer é mesmo uma das vozes mais representativas de um tipo de poesia que, no Brasil, sempre foi marginalizada, pouco estudada na academia, talvez porque ligada à contracultura, mas que, finalmente, começa a ser reconhecida exatamente por sua alta qualidade literária, por suas imagens às vezes extravagantes, mas essencialmente poéticas.
No continente americano, diz Martins em seu estudo introdutório “Surrealismo: un cadáver extranho de la poesía como bien común”, a aventura surrealista tem mantido uma relação clara com forças antagônicas — a magia e o positivismo —, lembrando que, se tem dialogado intensamente com a primeira, sempre se colocou visceralmente contra as argumentações conservadoras que mais se assemelham a imposições. De fato, a idéia do Surrealismo de escrita automática gerou grandes reações por parte daqueles que se agarravam à razão cartesiana tanto à esquerda como à direita do espectro político.
Martins reconhece que fazer uma antologia não passa de uma viagem por um universo de sugestões. Escolheu trinta poetas e todas as suas escolhas foram acertadas, ainda que grandes poetas possam ter ficado no esquecimento. Mas esse é o risco de toda antologia.
Entre os poetas escolhidos, além dos brasileiros, os argentinos Aldo Pellegrini e Enrique Molina, o peruano César Moro, o costarriquenho Max Jiménez e o dominicano Freddy Gatón Arce valem a viagem, embora o mais especial seja mesmo o martinicano Aimé Césaire, que fez das descobertas do Surrealismo o caminho para a negritude, tendo se utilizado de uma técnica européia para o seu reencontro com a cultura africana.
Além de Césaire, o norte-americano Philip Lamantia e os canadenses Roland Giguère e Paul-Marie Lapointe e o haitiano Clément Magloire Saint-Aude completam uma lista basicamente de latino-americanos, que ainda inclui os chilenos Rosamel del Valle, Braulio Arenas, Teofilo Cid, Enrique Gómez-Correa e Ludwig Zeller, o peruano Emilio Adolfo Westphalen, o equatoriano César Dávila Andrade, os argentinos Olga Orozco, Francisco Madariaga, Julio Llinás e Alejandro Puga, a costarriquenha Eunice Odio, os venezuelanos Juan Sánchez Peláez, José Lira Sosa e Juan Calzadilla, o cubano Lorenzo García Vega e o colombiano Raúl Henao. Esperamos, agora, que Floriano Martins faça a versão da antologia para o português.

[2005]

[Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa e mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003).]


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