O
Brasil é um país de poetas. "A dor ensina a gemer"., diz um adágio;
"Quem canta, seus males espanta", assegura outro. Talvez, por isso,
tantos cantem nesta Pindorama. Na proporção dos cantores existentes, porém, os verdadeiros
criadores literários são poucos. A maior parte é de subliteratos, mesmo.
Floriano Martins, cearense de Fortaleza,
onde nasceu em 1957, é um dos bons poetas brasileiros da atualidade.
Incursiona, com êxito, ainda pela crítica literária e o ensaio. Porta culto,
tradutor de Federico García Lorca e Guillermo Cabrera Infante, filia-se a uma
das correntes poéticas mais representativas da poesia brasileira contemporânea,
o surrealismo essa escola já octogenária, mas que tem demonstrado uma
capacidade revivente inegável, encontra, entre nós, o poeta de Nenhuma correnteza inaugura minha sede
um de seus expoentes.
Li, no mesmo vagar com que se deve tomar
um bom vinho, o livro Alma em Chamas
(Letra & Música Comunicação Ltda., Fortaleza, 1998), reunindo poemas
escritos entre 1991 e 1998.
A felicidade com que Floriano Martins
transita entre o poema em versos e o poema em prosa é meridiana, embora sua
obra reflita o espírito da escrita automática, natural do surrealismo.
Entretanto, esse fazer poético, que sói soar truncado nos epígonos, escoa e
ecoa límpido no poeta cearense. E essa clareza transparece nas passagens em
verso ou prosa. Nas primeiras, ao aproximar-se bastante da métrica tradicional,
dá uma unidade rítmica aos poemas mantendo uma certa liberdade já consolidada
no poema do século XX. Na prosa poética chega-se ao verso verdadeiramente
livre, fugindo à aridez de muitos que tentaram esse caminho da arte poética.
Veja a estrofe do poeta:
O
homem é a metade de seu canto, a metade
de
seu mundo devorado pela criação,
linhas
e raízes do desejo, pedras negras
do
sonho, o homem e sua metade dissolvida
dentro
das visões dessangradas, seus ecos.
A
outra, blasfema entranha, é a aparição
de
si mesmo, o mito destruído, o horror
predileto
do ser, vida ornada de miséria,
sonhos
macerados, o homem em seu canteiro
de
imagens, secreta morada de cinzas.
É assim que (ed. Cit., p. 37), definindo
o homem, o poeta define o próprio poema. "O homem é a metade de seu
canto…", a metade do poema. em outra passagem, agora em prosa, sentencia:
" O poema é como um lagarto voraz em busca de seu enigma verde. Não canto
a ninguém. Dissolvo-me para que me alcance. Morra o homem de solidão, até ser o
poeta de si mesmo." (p. 51)
O homem é o próprio lagarto, é um animal
muito antigo que somente se conhece através do poema, daquela supra-realidade
de que falou alhures Fidelino de Figueiredo.
Uma leitura apressada dos poetas
pertencentes à família literária de Floriano Martins pode ser enganosa; pode
revelar metade do homem, o lagarto, esquecendo sua voracidade em busca do
enigma verde, enigma que pode ocultar-se sob diversas formas. Duas delas estão
no exotismo dos nomes orientais (já usado pelos simbolistas) ou na recorrência
às mitologias e, mais especificamente, às constantes referências a outros
poetas. Neles o lagarto vai saciar-se de verde, o verde/verde vida/ que a
vegetação poética põe à disposição do homem para saciar sua fome de
supra-realidade, sua ancestral necessidade de céu, estrelas, divindades. Isso
se realiza com a morte do homem de solidão e o nascimento do poeta de si mesmo.
Ora, esse supra-realismo (sur + réalisme)
surge - até mesmo historicamente - como uma negação da torre de marfim
simbolista. O símbolo, extirpada a barriga famélica, é a metade audível do
canto. É o corpo, o poema. A saciedade, esta sim, é a poesia. Daí as limitações
da (talvez pretensa) cientificidade crítica para entender essa poesia,
traduzi-la à linguagem não-literária pode revelar-se impossível. O acertado
pode ser reescrevê-la, romper com a escritura crítica tradicional. Quando assim
se procede vê-se que Floriano Martins, ao contrário da maioria dos nossos
comentadores de versos, consegue unir as duas metades de que ele tanto fala em
seus poemas. E em o conseguindo apresenta-se como um verdadeiro poeta, um
criador literário pleno, como poucos de sua geração.
[2000]
[Jornal
O Nacional. Passo Fundo, RS.
30/11/2000.]
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