Com este Duas mentiras, Floriano Martins
revela-se, mais uma vez, como uma das vozes mais originais da poesia
contemporânea brasileira. E como alguém que está permanente a questionar a si
mesmo, ao que faz, e principalmente o leitor. Evidentemente, provocar o leitor
é um modo de instaurar o diálogo, de fazer que a leitura não se reduza a uma
relação passiva, unilateral, mera fruição do texto do outro. Outro? Mas que
outro? Quem é esse outro? – pode-se perguntar, e certamente o leitor
perguntará, pois Duas mentiras
transmite a impressão de que seu autor se esconde, ao adotar uma persona feminina. E mais, de que
resolveu promover uma inflexão, mudança radical, se compararmos este livro com
sua produção anterior – por exemplo, Alma
em Chamas, seu livro de 1998 – que poderia ser perfilada ao barroco, ou,
antes, a um surrealismo metafísico, além de ser associada a algumas das grandes
construções de fragmentos que, na modernidade, ocuparam o lugar da epopéia.
Aqui, não: o que temos é linguagem quase sempre direta, fluente, de poucas
imagens. No lugar da sugestão promovida pela imagética de origem simbolista, há
descrições, um percurso minucioso pelas regiões, desvãos e reentrâncias do
corpo, por gradações e nuances do erótico. Tudo muito real, nada mentiroso.
Poderia ser um depoimento, se o autor fosse aquele – aquela, no caso – que
fala. Mas não é. Resta saber se esta é a voz de outro (de outra) ou se sua
própria voz é a voz do outro.
Procurando
neste novo livro o Floriano dos poemas anteriores, encontramos algo em comum: a
preferência pelo poema dramático, com um personagem, um protagonista, que
enuncia e declara algo. Mas, cabe insistir, onde está a mentira? Talvez esta
seja uma falsa questão, por endossar uma poética realista, da arte como mimese.
Sob o ponto de vista literário, é irrelevante se tudo isso foi inventado, ou
não. Tanto faz: se não aconteceu, pode acontecer. Acontece. O relato, ou
pseudo-relato em Duas mentiras é
universal.
Encarar
um texto como quebra-cabeças, enigma a ser decifrado, talvez não seja um bom
procedimento crítico. Passa ao largo de muita coisa – encontrada a chave, ou
uma aparente chave, deixa-se de lado o percurso para chegar lá, o estilo, a
“escritura” propriamente dita. Mas, note-se, Floriano se refere a duas mentiras – se entendermos mentira
como sinônimo de negação, de enunciação do que não é, temos uma dupla negação.
Uma afirmação através do avesso, nesse canto da reintegração ao todo através da
união amorosa. Estes versos de Alma em
Chamas podiam servir como sua epígrafe: Teu
corpo e o meu caindo sobre o mundo: / noite saqueada por uma caravana de
relâmpagos. O par relatado em Duas
mentiras nega o tempo. Seu jogo, sua dança, como se expulsassem os espíritos corruptos, dos corpos nus com asas, ilustrados feito uma parábola
insofismável, é um exorcismo da grande mentira, que é a passagem do tempo:
o amor não tem nenhum apreço pela
história. Por isso, refazíamos o
enredo, fosse contra os cátaros ou a excomunhão de algum dualismo não revelado,
pois tua heresia pacifica e me abrasa as
dádivas. Para os amantes, que, ao multiplicar o gozo e o êxtase, superam a
circunstância, as dicotomias entre real e imaginário, o mundo do simbólico e
aquele das coisas, a mentira está lá fora.
[2008]
[Prólogo do livro Duas mentiras, de Floriano Martins. São
Paulo: Projeto Dulcinéia Catadora, 2008.]
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