quarta-feira, 10 de setembro de 2014

LUIZ CARLOS MONTEIRO | A poesia sem tréguas de Floriano Martins



Floriano Martins escreve poesia como quem repele, de modo radical e irreconciliável, o minimalismo de décadas recentes. Ele intenta afastar de seu discurso lírico certas falácias redutoras e insustentáveis, que manifestam-se tanto na esfera intuitiva quanto no terreno da poética propriamente. Descarta o esvaziamento de conteúdos indispensáveis à expansão e permanência da boa poesia, abolindo também a esterilidade formal provocada pela arrumação solta, artificiosa e aleatória de palavras no poema. E ao divulgar seu novo livro pela Internet – o eBook Natureza morta -, contradiz tudo aquilo que se destinaria a facilitar a engenharia, em muito ilusória, da leitura funcional, supostamente fluente ou veloz.
A expressão-título Natureza morta pode sugerir coisas como modalidade pictórica ou degradação do verde. Ou ainda, a tematização e metaforização do amor, força-motriz da poesia - de um amor em particular, que presentifica-se, paradoxalmente, na constatação da ausência. Contraposto ao amor que apresenta-se carnalizado e orgânico, fragmentado entre a necessidade, a negação e a angústia de sua consecução, e reforçado por uma sensualidade que logra superar a ocultação daquele outro.
Outros temas eleitos por Floriano Martins revelam-se como a religiosidade, a infância, a loucura e a reflexão sobre a poesia. A religiosidade aflora-se nos sete poemas de “Sombras raptadas”, parte inicial do livro. Figuras bíblicas femininas encetam monólogos onde o interlocutor preferencial ou possível, onipresente ou subentendido é o Cristo, que, embora mais raramente, também devolve sua fala. Tais vozes sobrepõem-se, caracteristicamente, à voz subliminar do poeta que as enuncia.
Na sua aproximação ao surrealismo, aos labirintos ativos do inconsciente, essa poesia consegue abrir brechas e possibilidades na busca  de um discurso renovado. São elementos formais definidores neste processo os choques vocabulares entre palavras aparentemente impossíveis de estarem juntas, as metáforas e imagens violentas e inusitadas. O poeta Claudio Willer vislumbrou, em resenha sobre o livro anterior de Floriano Martins, Alma em chamas (1998), relances de “uma crítica de fundo metafísico e romântico à sociedade burguesa”. Crítica que parte, sem concessões, em Natureza morta - apesar da ternura subterrânea nela contida -, do microcosmo existencial do autor: a família. O parentesco a que não se pode renunciar pelo sangue, a não ser que não se tenha ou não se conheça raízes genealógicas neste mundo.
Na terceira parte, “O rastro de um caracol”, sete poemas em prosa versam sobre a infância e suas descobertas projetadas na idade adulta: a relação oscilantemente próxima e distanciada com os parentes, a iniciação sexual adolescente e a herança livresca paterna. Tudo isso filtrado pela concepção ideológica – existencial e social – do poeta de agora, e pelos jogos antitéticos e dialéticos que empreende. E que não deixam margem ao escamoteamento de fatos verdadeiramente vividos ou apenas sugestivamente imaginados.
Essa crítica acirrada, na segunda parte de Natureza morta, chega até a um manifesto sobre a violência – “Às voltas com a violência (e suas campanhas)” -, no qual há questionamentos que ultrapassam a incoerência e a banalidade do senso comum. Tendo já se tornado rotineira nas grandes cidades, como um estado de coisas consentido, a violência requer, para o seu combate de dentro, armas inúteis talvez, como a argumentação da recusa em dela participar.
Em Natureza morta, duas são as formas poéticas escolhidas: o poema-poema e o poema em prosa. O primeiro, mantendo a disposição espacial que privilegia o binômio verso-estrofe, alinha-se em versos brancos ou ocasionalmente rimados, de dimensão fixa ou variável. Ele tende, com frequência, à extensão, provocada talvez pelo excesso diccional de quem mais tivesse a dizer. Os limites do verso são ultrapassados com o salto para outro verso ou estrofe, sob os efeitos do enjambement.
O segundo tem como resultado blocos inteiriços de uma prosa poética aliterante e assonante, que remove-se circularmente, perfazendo um retorno sutil e constante ao já dito, embora de outras maneiras e com outras palavras. Uma forma pode juntar-se à outra – trechos de poemas em prosa intercalam-se, antecedem ou sucedem a inserções de versos e estrofes do poema-poema, e vice-versa.
Mesmo sem decair em moldes demasiado rígidos, essa poesia não admite o leitor dispersivo, adepto do achado fácil ou da construção relaxada. A medida de sua flexibilidade reflete-se numa espécie de sentido oculto, tanto quanto em torpedos e “máquinas de guerra” como mensagens explícitas, que mais e mais vão se aclarando com a leitura progressiva e atenta. Expressões categóricas de cunho afirmativo e conceitual, filosoficamente diluídas ou corroboradas na experiência cotidiana a partir de um discurso compreensível, mesclam-se ao seu oposto, as interrogações renitentes. Estas introduzem-se como indagações sugeridas pela dúvida do afirmado, pela teimosia e cautela em não estabelecer verdades definitivas e últimas.
Em “Paródia do cadafalso”, Nota de Acesso ao livro, Floriano Martins pronuncia-se sobre o horizonte da especulação atual em torno da poesia, e mais extensivamente, da arte: “Abolida a sucessão de tempo e espaço, por ali foram também descontinuidades e diferenças. A arte quando muito pintará a si mesma: uma natureza morta”. No cerne desta visão um tanto pessimista, o poeta, ser despersonalizado e descentrado, anônimo e sem rosto, teria como referencialidade possível apenas a crueza de um cotidiano inglório e excludente nos meandros da urbe. Para não mergulhar completamente neste abismo de injunções prosaicas e transitórias, deverá cumprir - ainda que sem esperança de remissão ou “coroa de louros” -, o que dele é exigido pela poesia em conjunção com a vida. E assim, atendendo a disposições individuais mas solidárias, sustentadas no seu próprio fazer poético, poderá eliminar algumas descontinuidades indesejadas e estabelecer a diferença a seu favor.

[2001]




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