segunda-feira, 29 de setembro de 2014

CLAUDIO WILLER | Rompendo estereótipos sobre fronteiras nacionais



Com o lançamento desta antologia de Juan Calzadilla, temos mais um resultado dos esforços de Floriano Martins - que já resultaram em livros como Escritura conquistada (1998) e O começo da busca (2001) - no sentido de romper com a nossa insularidade, ou, em termos mais claros, com o provincianismo brasileiro. Desta vez, apresenta-nos a um "artista total", como já o designaram pela atuação como poeta, prosador, crítico e artista plástico. E, acrescentaria, como filósofo, pois nele a criação propriamente literária e artística é um desdobramento de uma reflexão implacavelmente crítica e, acima de tudo, honesta e sincera, pois, diz ele, "Não escrevo sobre aquilo que passa pela minha cabeça. / Escrevo mais sobre aquilo pelo que minha cabeça passa."
Assim como embaralha as fronteiras dos gêneros literários, da imagética livre, passando por uma gama de ironias e sarcasmos, até a escrita seca e concentrada de Aforemas, Calzadilla também rompe com uns tantos estereótipos sobre fronteiras nacionais. O leitor desta coletânea terá a impressão estranha, talvez até desconfortável, de que a Venezuela fica aqui. Ou de que estamos todos em Caracas. Ou então, de que Juan Calzadilla é o mais paulistano - ou curitibano, ou portoalegrense, ou belohorizontino, tanto faz - dos modernos autores hispano-americanos. Isso, por ele ser universal: a condição urbana - e bem menos humana - do título desta antologia é aquela de todos nós, sem escapatória: "O que foge da cidade foge de si". Daí a ironia cortante, pois "A cidade não admite vãs adjetivações". Quem não se sente retratado em cenas como as de A bolsa ou a vida, e não teve a mesma sensação de estranhamento, de que a "bolsa e a vida nos foram confiadas por empréstimo", e, ainda, "talvez não possamos dispor nem da vida nem da bolsa", pois nossa vida não nos pertence e algo nos foi subtraído bem antes de nos defrontarmos com este particular assaltante?
Calzadilla, com seu Diário sem sujeito, não é desses poetas que aspiram a seduzir o leitor. Menos ainda a mobilizar as massas: quer instigar, provocar desconforto. Chega a declarar-se "um ser abominável". Seus fragmentos não descrevem outro mundo, alguma alteridade idílica. Reiteram a constatação de que o mundo é sempre o mesmo. Antiplatônico, onde, para o filósofo grego, o círculo é representação da perfeição, da lógica que rege o universo, para Calzadilla, trata-se apenas de uma reiteração que sanciona o absurdo da condição humana. Pode-se perguntar como é que toda essa reflexão metaforizada, privilegiando o sentido, desdobramento da "consciência desse equilíbrio / de arco perigosamente estendido / ao qual me condena um pensamento a ponto de disparar", resultando em uma poesia e uma poética do paradoxo, é associada ao surrealismo, que privilegiou o ditado do inconsciente? O próprio Calzadilla nos dá a resposta, ao observar (na entrevista-prólogo desta edição) a diferença entre uma crítica surrealista e os "estereótipos preparados pelos meios de comunicação e de dominação". Sai ganhando, por isso, através da leitura desta Condição urbana, nosso conhecimento de surrealismo, de literatura venezuelana, e, em termos mais gerais, de algo da melhor poesia contemporânea.
Resta saber se a antilírica de Calzadilla, declarada em títulos como Diário para uma poesia mínima, Minimales, Antologia mínima, e em declarações como "As coisas que mais deve ver o poeta são as absurdas", não nos põe diante de um solipsismo, um beco sem saída. Diria que sim - mas acrescentaria que, através da sua poesia e de sua atuação como intelectual, ele nos instiga a romper com o círculo ao enfrentar o desafio de nomeá-lo, pois "A poesia é o gênero que trata do óbvio enquanto tal / mas que assume a dificuldade de expressá-lo". Assim como os cínicos da antiguidade (cujas críticas não eram motivadas pela indiferença, mas pelo inconformismo), e contrapondo-se aos estoicos (para os quais o mundo era naturalmente harmonioso), Calzadilla faz poesia política, embora em sua versão mais cética; por isso, a mais honesta. Retrata uma condição pós-utópica que, para o poeta de Dictado por la jauría, não é novidade: conforme mostra esta panorâmica de meio século de criação poética, seu autor nunca alimentou ilusões, e, menos ainda, quis iludir seus leitores.


[2005]

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