Com o lançamento desta antologia de Juan
Calzadilla, temos mais um resultado dos esforços de Floriano Martins - que já
resultaram em livros como Escritura
conquistada (1998) e O começo da busca
(2001) - no sentido de romper com a nossa insularidade, ou, em termos mais
claros, com o provincianismo brasileiro. Desta vez, apresenta-nos a um
"artista total", como já o designaram pela atuação como poeta,
prosador, crítico e artista plástico. E, acrescentaria, como filósofo, pois
nele a criação propriamente literária e artística é um desdobramento de uma
reflexão implacavelmente crítica e, acima de tudo, honesta e sincera, pois, diz
ele, "Não escrevo sobre aquilo que passa pela minha cabeça. / Escrevo mais
sobre aquilo pelo que minha cabeça passa."
Assim como embaralha as
fronteiras dos gêneros literários, da imagética livre, passando por uma gama de
ironias e sarcasmos, até a escrita seca e concentrada de Aforemas, Calzadilla também rompe com uns tantos estereótipos sobre
fronteiras nacionais. O leitor desta coletânea terá a impressão estranha,
talvez até desconfortável, de que a Venezuela fica aqui. Ou de que estamos
todos em Caracas. Ou então, de que Juan Calzadilla é o mais paulistano - ou curitibano,
ou portoalegrense, ou belohorizontino, tanto faz - dos modernos autores
hispano-americanos. Isso, por ele ser universal: a condição urbana - e bem menos humana - do título desta antologia é
aquela de todos nós, sem escapatória: "O que foge da cidade foge de
si". Daí a ironia cortante, pois "A cidade não admite vãs
adjetivações". Quem não se sente retratado em cenas como as de A bolsa ou a vida, e não teve a mesma
sensação de estranhamento, de que a "bolsa e a vida nos foram confiadas
por empréstimo", e, ainda, "talvez não possamos dispor nem da vida
nem da bolsa", pois nossa vida não nos pertence e algo nos foi subtraído
bem antes de nos defrontarmos com este particular assaltante?
Calzadilla, com seu Diário sem sujeito, não é desses poetas
que aspiram a seduzir o leitor. Menos ainda a mobilizar as massas: quer
instigar, provocar desconforto. Chega a declarar-se "um ser
abominável". Seus fragmentos não descrevem outro mundo, alguma alteridade
idílica. Reiteram a constatação de que o mundo é sempre o mesmo. Antiplatônico,
onde, para o filósofo grego, o círculo é representação da perfeição, da lógica
que rege o universo, para Calzadilla, trata-se apenas de uma reiteração que
sanciona o absurdo da condição humana. Pode-se perguntar como é que toda essa
reflexão metaforizada, privilegiando o sentido, desdobramento da
"consciência desse equilíbrio / de arco perigosamente estendido / ao qual
me condena um pensamento a ponto de disparar", resultando em uma poesia e
uma poética do paradoxo, é associada ao surrealismo, que privilegiou o ditado
do inconsciente? O próprio Calzadilla nos dá a resposta, ao observar (na
entrevista-prólogo desta edição) a diferença entre uma crítica surrealista e os
"estereótipos preparados pelos meios de comunicação e de dominação".
Sai ganhando, por isso, através da leitura desta Condição urbana, nosso conhecimento de surrealismo, de literatura
venezuelana, e, em termos mais gerais, de algo da melhor poesia contemporânea.
Resta saber se a
antilírica de Calzadilla, declarada em títulos como Diário para uma poesia mínima, Minimales,
Antologia mínima, e em declarações
como "As coisas que mais deve ver o poeta são as absurdas", não nos
põe diante de um solipsismo, um beco sem saída. Diria que sim - mas acrescentaria
que, através da sua poesia e de sua atuação como intelectual, ele nos instiga a
romper com o círculo ao enfrentar o desafio de nomeá-lo, pois "A poesia é
o gênero que trata do óbvio enquanto tal / mas que assume a dificuldade de
expressá-lo". Assim como os cínicos da antiguidade (cujas críticas não
eram motivadas pela indiferença, mas pelo inconformismo), e contrapondo-se aos
estoicos (para os quais o mundo era naturalmente harmonioso), Calzadilla faz
poesia política, embora em sua versão mais cética; por isso, a mais honesta.
Retrata uma condição pós-utópica que, para o poeta de Dictado por la jauría, não é novidade: conforme mostra esta
panorâmica de meio século de criação poética, seu autor nunca alimentou
ilusões, e, menos ainda, quis iludir seus leitores.
[2005]
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