segunda-feira, 29 de setembro de 2014

RODRIGO PETRONIO | Floriano Martins e o mergulho em todas as águas



A verdade é que todos querem ser Deus. E cada vez me parece que a grande tradição poética é consubstanciada por quem se recusa a sê-lo.
Floriano Martins

Se a inteligência de um homem é proporcional à sua capacidade de estabelecer recusas, ao conversar com o cearense Floriano Martins tem-se a nítida sensação de estar diante de um homem muito bem dotado dessa faculdade tão mal distribuída entre os seres humanos, sobretudo entre os intelectuais. Autor do livro de poemas Alma em Chamas, certamente um dos acontecimentos poéticos das últimas décadas, e de uma obra volumosa que abrange ensaios, crítica, tradução e entrevistas com poetas, além de uma série de inéditos, Floriano é um dos maiores conhecedores da poesia latino-americana moderna e contemporânea entre nós, e vem fazendo pontes das mais estimulantes entre essas literaturas e o Brasil. Mas, para nossa surpresa, é uma voz solitária e praticamente isolada em sua proposta. Pela importância e amplitude desse trabalho, veiculado sobretudo nas revistas virtuais Agulha e Banda Hispânica, das quais é editor, assusta sabermos que ele não tenha maior repercussão. Também é de se estranhar que algumas poéticas e estéticas como o Surrealismo, por exemplo, de grande penetração no resto da América e do mundo, não tenha encontrado acolhida em terras brasileiras. E Floriano, para reparar esse lapso e historiar o desenvolvimento do movimento lançado por Breton em Paris em 1921, publicou recentemente o livro O Começo da Busca – O Surrealismo na poesia da América Latina, que traça um perfil histórico dessa estética, emulando e invertendo o título de um livro onde Octavio Paz faz esforço similar, La Búsqueda del Comienzo. Agora prepara o segundo volume desse trabalho, que virá aprofundar, desenvolver e complementar alguns aspectos do primeiro.
São múltiplas as causas da negligência brasileira para com a cultura de seus vizinhos e da nossa resistência a um tipo de representação artística que ele crê das mais subversivas. E é entrando nesses assuntos que a conversa esquenta, e Floriano só falta soltar fogo pelas ventas. Um dos principais motivos dessa barreira brasileira é o que ele chama de “falseamento da história”. Segundo ele, todo corte brusco e abrupto na história produz uma falsificação, pois apaga a multiplicidade do fenômeno no momento em que ele estava ocorrendo. Assim, a eleição da Semana de 22 como o ingresso do Brasil na modernidade, embora seja um fator aparentemente irreversível, não dá conta da diversidade dos fatos e equivale à “leitura do curso das águas em uma lagoa”. Muita coisa se perdeu nesse processo, e a extensa documentação sobre cantos populares colhida por Alberto Nepomuceno, por exemplo, intelectual morto em 1920, anterior portanto à Semana, e de quem Floriano escreveu uma biografia, foi praticamente esquecida em proveito das pesquisas de Mario de Andrade. Por outro lado, o Modernismo teria inaugurado um “regime de exceção”, por meio do qual convalidou seu ideal de modernidade e de nacionalismo imbuído do Futurismo de Marinetti, e a partir do qual passou a criar os critérios eletivos para a formação do cânone literário no Brasil, critérios esses nem sempre de ordem estética, mas meramente ideológicos. E aqui entra o Surrealismo, mais especificamente os argumentos que Floriano desenvolve em O Começo da Busca, e a defesa de duas diretrizes: uma reavaliação urgente do lugar que Murilo Mendes e Jorge de Lima ocupam no cenário da literatura brasileira, instigando a crítica a desvinculá-los de vez dos estigmas limitadores da “poesia em Cristo”, e a recusa desses dois poetas como sendo os únicos representantes do Surrealismo no Brasil, aos quais Floriano soma os nomes de Roberto Piva, Claudio Willer e Sergio Lima, entre outros.
Essas faces se conciliam, no entanto. E ele faz um traçado oblíquo onde procura demonstrar as lacunas do cânone literário brasileiro, articulando-as à história do Surrealismo e a uma série de poetas hispano-americanos desconhecidos por nós. Suas reivindicações são duras, passam longe da fala amaneirada e adiposa com a qual viemos nos acostumando nos últimos tempos no âmbito do debate literário. Assim, ele começa julgando que mesmo a trinca de ases que gozam de prestígio em língua portuguesa – Paz, Neruda e Borges – deveria ser filtrada com maior seletividade e analisada de forma mais consequente. Porque Octavio Paz, que “sempre foi crítico da realidade que tinha à sua volta”, com o tempo começou a deixar de sê-lo, e, como poeta, acabou se “cristalizando bastante cedo”. Neruda pôs em cena o seu ego monumental para a criação de suas obras “cosmogônicas”, mas não conseguiu levar sua empreitada muito adiante, e Borges, segundo Floriano, é um grande “fabulista”, um homem dono de uma grande capacidade de fazer de si o centro do mundo e de criar mundos possíveis, mas que, como poeta, faz valer as palavras do crítico Gerardo Deniz, sendo muitas vezes “previsível e enfadonho”. 
Nesse diapasão de leitura crítica, para Floriano, não só o nosso desconhecimento da literatura hispânica é aviltante, como o que conhecemos é muitas vezes referendado sem muito rigor e absorvido de forma um tanto epidérmica. E um caso onde essa distorção se dá de maneira mais aguda é no que diz respeito ao cubano Lezama Lima, um dos seus autores prediletos, mas cujo caráter algo “enciclopédico” de sua obra e sua reivindicação de uma estética autóctone por intermédio da figura do Señor Barroco, presente em um dos seus ensaios, acabaram sendo apropriados pela estética Neobarroca de Severo Sarduy e pelo Neobarroso do argentino Nestor Perlonguer, que fizeram uma leitura distorcida do grande poeta, autor de Dador. E nesse ponto Floriano parece dar as cartas da tradição poética que realmente lhe interessa. Segundo ele, todos esses autores tentaram, cada um à sua maneira, “ser Deus”. E que cada vez mais lhe “parece que a grande tradição poética é consubstanciada por quem se recusa a sê-lo” – arremata. É assim que trava o seu pacto luciferino com o anti-cânone das letras hispânicas, ou pelo menos com o lado menos óbvio do mapa dessa cultura, e fala de suas predileções, como o poeta venezuelano José Antonio Ramos Sucre, que “se matou por não suportar mais a presença de visões que lhe assombravam a existência” e não vivia “em um plano literário, mas sim na mesma dimensão excessiva de um Artaud”. Faz uma menção especial aos poetas do Chile, cuja “vertente múltipla encontra em Pablo de Rokha, Rosamel del Valle e Humberto Díaz-Casanueva uma fonte de renovação que não desconsidera o autóctone e se manifesta no diálogo com a Europa”. Já no colombiano León de Greiff, “encontramos o mais surpreendente caso de polifonia na tradição poética latino-americana”, enquanto o guatemalteco Luiz Cardoza y Aragón “soube buscar na algazarra da modernidade uma voz que fosse a soma de todas”. Floriano ainda repassa o nome do nicaraguense Pablo Antonio Cuadra, que, assim como Lezama Lima e Octavio Paz, foi um dos autores pioneiros nas leituras que têm como objetivo uma definição cultural da América, e que “estabeleceu uma nova relação com o mito”.
Claro que essa dificuldade de penetração do Surrealismo no Brasil não se deve apenas a um fator ocasional e à formação do cânone. Deita raízes em uma longa tradição positivista, que se espraia em uma série de esferas da vida social e intelectual e bloqueia qualquer iniciativa de subversão de seus postulados. Para Floriano, nossa história é marcada tanto pelo peso de teorias cientificistas, no pior sentido desta palavra, quanto por certa “chaga cristã”, que, por exemplo, obstou uma efetiva “explosão do ser” nas obras de Murilo Mendes e Jorge de Lima, tornando-os fraturados e divididos em suas consciências entre a aspiração a uma liberdade total e os limites motivados pelo pecado e pela negação católica, e, portanto, incapazes de levar às últimas consequências a proposta Surrealista como ela de fato o foi em outros países. Já o caráter cientificista das teorias positivas, que encontrou ambiente fértil no Brasil, estimulou uma relação cada vez mais imanente e estrutural com a linguagem poética, a ponto mesmo de desvinculá-la da matéria vital que lhe origina e transformá-la em um arranjo de signos, “apartada da realidade”. Na ótica de Floriano são mais ou menos esses os ingredientes de um novo falseamento da história, levado a cabo pelo Concretismo.  E mais uma vez, em 1956, com o Plano Piloto da Poesia Concreta e tudo o que adveio daí, temos um recorte “fabricado” da história e um novo “regime de exceção”. Se o “afazer” poético se torna uma forma de “afasia”, e ao invés de construirmos uma linguagem que plasme e transfigure todas as dimensões do mundo e todas as camadas da realidade nós nos isolamos nela como nefelibatas em suas torres de marfim, sob a desculpa de só assim podermos conquistar aquela autonomia da linguagem poética inaugurada pela arte moderna, então rompemos todos os vínculos entre o pensamento e a ação, e todo o projeto de criar uma arte inclusiva e de valor rigorosamente continental vai pelos ares.
O interessante é que Floriano, em um dos seus livros, Fogo nas Cartas, defende a tese de que a poesia, mesmo sendo “intransitiva”, é filha da “alteridade”. Sua visão é de que poesia e política se complementam, assim como a reversibilidade do imaginário e do real pode gerar novos horizontes, novos focos de luz que podem incidir e transfigurar a face da realidade que se nos apresenta. Assim, a chamada autonomia não é algo que se esgota na linguagem, tomada em si mesma, composta a partir de regras intrínsecas e em oposição ao mundo, nem algo que deve servir de veículo ou instrumento de transformação desse mesmo mundo, porque senão ela seria política sem ser poética, mas um misto dos dois. E é nesses termos que ele se refere a alguns dos poetas brasileiros como “autistas”: crêem que a autonomia nasce de um “idioleto”, de uma fala exclusiva criada por eles mesmos ou pela manipulação da linguagem em uma dicção especial e especiosa que por ventura tenham encontrado. Pelo contrário, Floriano diz que a autonomia do poeta só nasce no momento em que ele “mergulha em todas as águas”, e sente sua voz a tal ponto madura que pode com ela e nela plasmar e encarnar a realidade que o circunda, não apenas descrevendo-a ou manipulando técnicas, mas penetrando verticalmente o mistério Ser e o seu devir.
Essas considerações ganham uma dimensão muito ampla se pensarmos na história de nossa mentalidade e nas estruturas hegemônicas do pensamento no Brasil. Basta lembrar que boa parte da nossa poesia e da nossa crítica literária atual flertou ou ainda hoje mantém vínculos fortes com a vertente Estruturalista, com a semiologia ou com as escolas mais recentes dos desconstrucionistas, como a de Derrida, por exemplo, que pregam um recorte poético sincrônico e atemporal, onde a poesia pairasse incólume, livre das contingências e cristalizada sob a forma de um puro enunciado discursivo. É claro que de novo isso não tem nada, e já está na antiguidade: o velho filósofo grego Crates, da escola cética, também propôs que a verdade era inacessível, porque tudo era fruto de artimanhas da linguagem. Com a diferença que Crates, de posse dessa mazela existencial, foi viver com os cães, dormir em um barril, ter seu corpo forrado de pústulas e se alimentar exclusivamente de tremoços, revelando no mínimo mais coerência e honestidade intelectual do que os nossos novos céticos, que usam toga universitária e falam francês.
Por outro lado, há uma outra tradição intelectual brasileira que procura dar fundamentos ontológicos à história, e é movida por uma busca romântica frenética de Nacionalidade e da essência nacional que nos constitui, busca essa que, malgrado ser frenética e muitas vezes proceder por meios tão equivocados quanto o mérito intelectual daqueles que a exercem, até que poderia ser de bom talante, caso não desprezasse os meios em benefício dos fins. Em resumo, no meio-fio entre essas duas correntes do pensamento, somos marcados por uma história intelectual cuja chaga, para além de cristã, parece vir coroada pelo dilema infinito e pela disputa maniqueísta entre duas forças que funcionam como a mesma simetria de um céu e um inferno: Forma versus Conteúdo. Haja vista que mesmo as variantes desses termos partem deles, ora invertendo seus postulados ora os embaralhando, sem contudo dar um passo sequer além da pobreza dessa descrição de mundo. E penso aqui na Antropofagia de Oswald de Andrade, que pretendeu eleger a “forma brasileira” de ser, e no Concretismo, que “fez da forma um conteúdo”, como um caranguejo que se crê revolucionário por ter decidido andar para frente. O fato é que, para qualquer pessoa inteligente, ambas não passam de um purgatório, e o que esperamos é uma redenção, não um aprofundamento de nossa própria esquizofrenia.
O “mergulho em todas as águas” de que nos fala Floriano Martins é providencial e significativo. Aliado à perspectiva continental de sua visagem literária e ao caráter libertário do Surrealismo, sinaliza que ainda há muita água para correr pelo rio de Heráclito, muitas barragens a serem estouradas e muitas lagoas onde os sapos de ontem, sempre os mesmos, ainda coaxam, a serem arrebentadas pela fúria de seu devir que há de explodir em um futuro próximo, segundo carta de Pierre Naville que Floriano Martins cita. Quem sabe assim a dualidade do bem e do mal seja superada e possamos enfim auscultar a unidade parmenídica do Ser essencial que configura e anima todos os seres, sejam eles movidos pelo fogo, pela água ou por qualquer outro quinto elemento que esteja além da matéria, que desconhecemos e que provavelmente nunca viremos a conhecer.

[2001]




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