Para muita gente,
poesia não se explica, poesia existe para ser lida, ouvida, cantada, e tem a
finalidade de emocionar, comover as pessoas. Para os adeptos dessa concepção,
explicar, analisar ou interpretar seria perda de tempo. Pior, seria um desvio,
uma distorção: ao tentar explicar o poema, eu corro o risco de bloquear minha capacidade
de comoção, reduzo-me à fria racionalidade e me faço impermeável à poesia.
Esta é uma crença antiga e parte da convicção de que a
linguagem poética é a linguagem da vibração e do entusiasmo, não a do arrazoado
lógico-explicativo. O poeta, por algum meio misterioso, que desconhecemos,
injeta no seu poema uma carga intensa de entusiasmo; ao ler, ao ouvir ou cantar
o poema, nos deixamos contagiar por entusiasmo equivalente e nos entusiasmamos
também, desde que não tenhamos a pretensão de explicar, porque se isso
acontecer não haverá entusiasmo algum, nem no poema nem em nós.
Esta é de fato uma concepção muito antiga. No Íon, Platão afirma que o entusiasmo está
na origem da poesia. E o que vem a ser, afinal, “entusiasmo”? A palavra é
formada do sufixo “in”, que indica movimento para dentro, e “teos”, raiz que
significa “deus”. Estar entusiasmado quer dizer, então, “estar com um deus
dentro”. Mas não precisamos, nem devemos, eu acho, tomá-lo ao pé da letra.
Podemos ver aí uma metáfora.
Entusiasmo seria aquele estado de espírito, quase sempre
súbito e passageiro (quando não induzido artificialmente), graças ao qual nos
elevamos ou temos a ilusão de nos elevar acima da banalidade do cotidiano.
Quando nos entusiasmamos, nossa percepção se torna mais ágil e aguçada, nossos
horizontes se ampliam a dimensões insuspeitadas, a realidade como um todo se
ilumina – ou pelo menos assim nos parece, no breve instante que dura o
entusiasmo. Mas logo depois voltamos à mesmice do dia a dia.
Sugiro recuar um pouco às fontes dessa concepção. Os
gregos antigos mantinham, na Acrópole, um teatro
dedicado a Dioniso, onde as pessoas se reuniam para experimentar coletivamente
o entusiasmo poético: cantos em
louvor e celebração da vida intensa e absoluta, expressa em poesia. Mas os mesmos
gregos tinham também, fora da Acrópole, o ateneu,
casa de estudo, onde público e poetas se reuniam não para a celebração, mas
para a explicação, a compreensão da poesia.
Teatro e Ateneu correspondem, portanto, a dois caminhos
possíveis de convívio com a poesia, que os atenienses nos legaram: a celebração
dionisíaca e o estudo. E esses dois caminhos continuam a ser percorridos até
hoje, alternando-se ao longo da história a predominância e a hegemonia de um ou
outro, sendo que a adoção radical e ortodoxa do primeiro implica a exclusão do
segundo, e vice-versa.
Mas não estou interessado nos gregos antigos, e sim em
nós mesmos, na nossa época. Estou interessado em saber como procedemos nós,
hoje, em relação à poesia. Neste nosso tempo, qual dos dois caminhos antigos
prevalece? Por exemplo, este espaço que hoje ocupamos aqui, esta noite, no Centro
Cultural São Paulo, está mais para o teatro ou mais para o ateneu? Estamos aqui
reunidos para ouvir nossos poetas e para celebrar poesia, nesta espécie de
êxtase breve, embora intenso, proporcionado pelo poema? Ou estamos aqui para
estudar poesia, para aplicar ao poema nosso esforço racional-explicativo?
Pois bem, não tenho a pretensão de responder à pergunta.
E também não estou interessado na questão, em si, da oposição milenar entre o
Teatro e o Ateneu. Se comecei tocando neste ponto é porque aí reside, a meu
ver, a questão fundamental levantada pela poesia de Floriano Martins.
Uma das marcas fortes dessa poesia é a sua fogosidade, a linguagem
concebida como jorro impetuoso, fluxo abundante sobretudo de imagens e
associações livres. Ou seja, Floriano Martins nos coloca diante do entusiasmo de que eu vinha falando.
Se o leitor não estiver premeditadamente à procura de significados lógicos, é provável
que se deixe contagiar pela estranha vibração da espécie de magma verbal que
forma os seus poemas e sinta, de alguma forma, a intensidade das sensações que
sua linguagem vai criando e arrastando e recriando, nesse mesmo arrastar
interminável.
Vejamos um exemplo, o fragmento n° 3 do longo poema, intitulado
“Telas no porão”, da coletânea Aula de
Pintura:
De que são
tuas palavras
recortadas em tábuas? De que é tua língua que chove e molha-me os olhos que te
buscam? De que são tuas páginas escritas enquanto chove e parece ser noite? De
que são os monstros talhados por teu silêncio? De que é a realidade? De que são
a pele, o fósforo da imagem, o material de perdas, as falsas pistas, o golpe
errante, o rol de súplicas da linguagem para que a imitemos até que não mais se
reconheça em si? De que é tua herança entre traças? De que são tuas folhas em
repouso? De que é a realidade? De que são os livros que nos deixam fora de tudo? De
que é a volúpia que toca teu seio e derrama-se por toda a noite? De que são os
números de tua desordem? De que é o esplendor de tua memória, incubo ridente em
sua dança? De que são teus poemas extintos, tuas sombras raptadas, os diálogos
entre fantasmas, as baladas do peregrino, teus jogos que supomos inevitáveis,
tuas falhas plenas? De que é mesmo a realidade?
Não temos a menor dificuldade em imaginar um poema como este lido ou
declamado ou cantado, em louvor de Dioniso, no teatro da velha Acrópole, talvez
por um coral vibrante, uma ou outra voz destacada, ponteando aqui e ali, quem
sabe com acompanhamento de música e dança. Mas não nos deixemos iludir. Isso
que chamei de jorro impetuoso ou magma verbal, na poesia de Floriano Martins,
não tem nada de espontâneo, nada da voz inspirada que fosse vertendo para o
papel, sem pensar, o fluxo incontrolado de seus versos e imagens. Se prestarmos
atenção, veremos que tudo aí obedece a um secreto ritual, tudo aí decorre de
uma série de expedientes técnicos, premeditados e altamente elaborados.
Primeiro, o tom interrogativo, que se mantém, sistematicamente, do início
ao fim da composição. A cada pergunta (são quinze ao todo), a suspensão
interrogativa só faz crescer e nada parece sequer sugerir a possibilidade de
resposta. Repare-se também na sábia alternância entre perguntas breves, que
ocupam um só verso, ou menos, e perguntas desdobradas, que se estendem por
três, quatro ou mais versos, imprimindo ao andamento do poema uma modulação
estudadamente variada e não determinada pelo acaso. Repare-se, finalmente, na
articulação lógica representada pela reiteração da pergunta “Que é a
realidade?”, que surge no
oitavo verso, é retomada simetricamente, sem alterações, no verso décimo sexto,
e retorna, como síntese aglutinadora, no último verso, com o acréscimo irônico
de uma só palavra: “Que é mesmo a
realidade?”.
Isto significa que, no caso de Floriano, entusiasmo não é
sinônimo de inconsciência. Ao contrário, convive com a mais extrema lucidez e
parece estar à procura exatamente da máxima consciência possível. Analisemos
este aparente paradoxo.
Segundo a lenda, o entusiasmo, a intensidade das emoções
e o furor dionisíaco do canto nos levariam a anular a consciência individual,
levando-nos a mergulhar numa espécie de placenta geral, o inconsciente
coletivo; nossa alma perderia seus contornos e limites imediatos, para vibrar
em uníssono com a vibração exterior dos movimentos da natureza. Isto é o que
diz a lenda, mas não é o que nos mostra a poesia de Floriano Martins, onde
entusiasmo e consciência, emoção e razão coexistem, em instigante e paradoxal
conluio. Conclusão, o “teatro” de Floriano guarda o seu tanto de “ateneu”: um
se alimenta do outro.
A “prova” disso (“prova”, aqui entre aspas, com um
sentido ostensivamente irônico), é que um dos temas prediletos de Floriano é a
própria poesia. O poeta constantemente se interroga (e nos interroga) pelo
sentido da poesia. Que é a poesia? Para que serve? Que é o poeta? São perguntas
que se repõem, repetidas vezes, em seus poemas, indicando sempre dúvida,
incerteza, inquietação, e necessidade de seguir interrogando, a fim de definir
o fazer poético, situá-lo, antes de cumprir seus desígnios. Na Acrópole antiga,
o poeta não parava para indagar a respeito da condição de poeta, porque naquela
altura ninguém
tinha dúvida sobre o papel da
poesia no mundo. Mas no moderno teatro-ateneu suscitado por Floriano, essa
certeza se dissolveu e o poeta já não sabe, ninguém sabe, com segurança, qual é
o papel, qual é a função da poesia.
Por isso Floriano desfia sua inquietação a respeito,
tentando sempre redefinir, para os tempos de hoje, essa função:
O poeta é exigido por uma angústia
vital: aquela do desenlace em si de uma nova transparência a partir de toda a
opacidade de sua vida. Tudo nele busca o desespero iluminado das formas, sua
convulsão precipitada sobre a beleza das imagens aterradoras. Refere-se o poeta
sempre ao outro que ainda não conseguiram tocar suas débeis figuras. Indigente
do instante e do conhecimento do mistério, concebe para si a tarefa de escrever
um livro impossível: o da personificação da morte. Dissolve-se na matéria de
suas metáforas, misturado à visão do livro findo inacabado.
Com quem se parece o
pobre poeta senão com Deus?
Para concluir – se não, esta apresentação se estende para muito além do
razoável – gostaria de destacar mais uma característica marcante da poesia de
Floriano: sua ambição extrema, não propriamente estética, mas filosófica e em
certo sentido ética. A poesia de Floriano Martins não está voltada para as
circunstâncias, não é limitada pelos eventos históricos, não se restringe ao
impulso confessional ou biográfico. Sua ambição aponta para as grandes
generalizações: o Homem, o Mundo, o Ser. O esvaziamento do sentido da poesia e
do poeta, no mundo moderno, não representa, para Floriano, uma questão
meramente técnica ou estética. O poeta nos lembra que, neste nosso mundo, não é
propriamente a poesia mas a própria vida que perdeu ou corre o risco de perder
o sentido; não é o poeta que alimenta dúvidas sobre seu lugar e função no
mundo, mas é o próprio ser humano que já não sabe definir o que é ser humano.
É disso, é dessa angústia radical que trata a poesia de
Floriano Martins. Ao buscar um sentido para a poesia, o poeta busca, na
verdade, um sentido para a condição humana em geral, inconformado com a
letargia e a desumanização que vêm tomando conta do nosso dia a dia e dos
nossos horizontes.
E esse sentido só poderá ser encontrado – esta me parece
a meta proposta por Floriano – através da poesia. Por isso o poeta afirma que “nosso
século é uma perda de sentido”; mais adiante pergunta: “O que vai nos restando
então?”, e em seguida responde: “Um exercício de elipses, um diálogo com o
vazio”. Por isso, também, Floriano diz:
Caímos dentro de nós, sombrias fezes de nossa súplicas,
dor de cordas entrelaçadas ligando um vazio a outro, terraço de palavras que
não lhe alcançam o piso, rio de disfarces, vidro em sua água distorcida, areia
que não mais revela seus rostos ao fogo, pulmão suspenso nos galhos da
inquietude, todas as noites parecem estar aqui, açoitadas pelo relógio da dor,
pendulares inquéritos do verso que nos debulha, até aqui viemos.
E o poeta remata, no final do belíssimo poema “Altares do Caos”:
Em que tempo ocorre o verso? De onde
provém todo o mal da poesia? Olha a sombra, olha a dor, vê que nos assombra seu
ardor. Furtivas serpentes da imagem, o milharal de suas luas. Se não tiramos do nada não é criação, disse-me
a disforme criatura que há semanas pousava aos fundos de uma taberna, nu
ardendo em frio. Não
passa de débil visagem a arte hoje aceita, vertigem do duplo, delírio do outro
anunciado. Para livrar-se de tal magia há apenas que criar.
[1997]
[Texto lido no
Centro Cultural São Paulo, em 1997, antecedendo uma leitura de poemas de
Floriano Martins.]
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