terça-feira, 9 de setembro de 2014

MARIA DA PAZ RIBEIRO DANTAS | Estudos de Pele, de Floriano Martins



No título Estudos de Pele, o último livro de Floriano Martins, a palavra pele parece sugerir uma pista falsa. Entrar no texto é praticar Um rasgo bem dentro do abismo, onde o coração dispara e ninguém pode conter a presença do indizível. Trata-se de adentrar um labirinto com passagens em múltiplas direções. O roteiro conduz a um descentramento e este se dá em face de um referencial: o conceito de identidade. Num capítulo da Parte III - O hóspede -, que mescla prosa e poesia, é discutida a questão da identidade, na arte ou fora dela. O mesmo em face do mutável. Desde a Parte I, o texto dá espaço às suas visitas perversas (algumas personagens bíblicas mulheres (em Paródia do cadafalso) e várias outras como em Um livro de Ângela, são apenas dois exemplos. A inesperada visita dessas sombras perturbadas não me leva a pensar senão em uma coisa: temos que aprender a ter mil vidas a um só tempo. O que parece faltar às vezes a essas “sombras” (no caso das bíblicas) é a leveza de ser outra coisa, sem a carga de ressentimento que as liga umbilicalmente a seus contrários. Como em Silentes Suplícios (Marta).
A obra é dividida em nove partes: I – Paródia do cadafalso, II – Sombras raptadas, II – Crime & Fuga, III – Rastros de um caracol, IV – Dores de nada, V – Dália do coração negro, VI – Lusbet: eis o abismo, VII – Um livro de Ângela, VIII – Ruínas exaustas, IX – Modelos vivos.
As labirínticas passagens, as múltiplas direções sugeridas pelo texto de Floriano sinalizam por vezes uma espécie de curto-circuito nos níveis tidos como normais de percepção da realidade cotidiana dentro dos mecanismos em que está estruturada a linguagem da vida em sociedade. É o que ocorre em determinadas situações narradas, como a que temos em O Cão e o Lustre. A cena remete à idéia de demência (uma forma bem próxima da loucura); mas no texto é, nada mais nada menos, que a transcrição, para a realidade objetiva, do flash agônico de uma subjetividade em ruína, a da avó enferma, visitada pelo neto, pela última vez: Lembro que havia um lustre pendendo do teto. A pouca voz me disse que ali estava com ela aquele negro cão, quieto, confiável, suspenso no vazio. Cão ou lustre? Luz ou escuridão?
Mas se na alucinada visão da avó o cão e o lustre são concretamente a mesma coisa, em Plano de Fuga o Anjo Líquido derrama-se na direção do abstrato, do invisível: O anjo derramando-se no copo assustava-me ao dizer o quanto a vida pode ser outra quando não se tem para onde ir dentro de nós. A vida pode ser outra, mas a identidade? O texto persegue a fuga obsessiva do mesmo (que a psicanálise nega), enquanto trai (dúvida ou “ato falho”?) certa inquietude quanto ao ser: E se todas essas sombras não forem apenas uma única sombra, a minha, a provocar-me de inúmeras formas?  Evocaria então um verso de Luís Miguel Nava em que confessa ter a ‘identidade acelerada’.
Inconsciente ou não, o que o texto persegue é a identidade estética. O poema Flagrantes no assoalho (Parte III) expressa um ritual encantatório em que o amor, condenado à morte pela estabilidade do encontro (como se a vida fosse apenas caber em permanência), é convocado à vertigem da busca incessante,

(…)
com deuses assombrosos percorrendo a casa, laminando vertigens para um livro, buscar-te,
buscar-te,
jamais desalentar-se
aguar rios, deixar-se desaguar,
nenhuma lição, apenas o corpo caindo,
a buscar-se: e buscar-te.

Esse ritual encantatório é a própria poesia, perseguida como uma caça onde quer que se esconda, seja no ínfimo ou no grandioso:

(…)
em uma síncope de obsessões, buscar-te, amor,
enquanto o poema te chama e prepara os archotes
que te conduzem por escadarias com línguas voláteis
a seduzir as páginas de teu corpo, sim, teu corpo,
três vezes teu corpo, buscar-te em recâmaras encantadas úmidas invisíveis, um vento sibilante de janelas decifradas pela noite, um coro de trevas, nota contra nota, o bordão entoado pelo acaso (…).

O código desse labirinto pode estar  em Visita de um Lagarto - momento do livro onde uma teia de imagens oníricas se adensa em narrativa cifrada, de sentido subjacente ao texto. Por aí, pele poderia conotar pele de lagarto, em sua adjacência a mimetismo, metamorfose, forma que se muda
Não há no texto um sentido linear a que possamos ter acesso, a não ser precisamente a construção dessa fuga da identidade. Por isso há passagens em que não escolhe entre poesia ou prosa, fica na indefinição, no limiar; deslizante para poder abranger a escuta quase psicanalítica do outro, sempre outro, ao infinito. Daí os recortes nas visões do garoto, coladas nas páginas dos livros e sopradas no ar, diante de inexistentes janelas:

Que forma assumiria tal vestígio em sua vida? As formas significam muito pouco. Poderia seguir recortando-as. Por uma aurícula errante trataria todas as cobras de duas cabeças. Chamaria raio os esfaqueamentos misteriosos que não raro eram comentados em casa E daria pernas ou asas ao pescoçudo gramofone da avó. As formas não lhe bastavam. Um novo personagem lhe despertara para tanto. Arrastava-se brincalhão sobre seu corpo. Não lhe eram mais enfadonhos os sonhos, embora seguissem silenciosos e em repisado repertório. Tudo permanecia o mesmo, mas ganhava em significado.
O instinto natural de subversão nos leva a ouvir o outro, a contraí-lo enquanto perversão essencial à sua própria existência (Floriano Martins na apresentação do seu Alma em Chamas. 1998).

Um Livro de Ângela é momento diverso, em que a narrativa se aclara, torna-se quase linear em seu jorro de imagens urgentes, como a captar o ritmo frenético do instante que passa, através de uma daquelas mil vidas.

(…)
Ângela me oferta a caligrafia de suas vertigens,
encrespa-me enquanto perdura,
é apenas um instante,
e quando lhe abrimos as vísceras não há semântica que nos leve além do instante.
transfigurado ressurrecto melancólico derruído,
porém aquecido pela mesma complexidade:
a dor do instante.

Enquanto metatexto, pratica uma auto-incisão e cria sua própria imagem (narcísica):

                       6.
Escrever assim em quebradiço
Dando a falsa idéia de ser nada
Pender para um ponto ou outro
Mudando de forma ou de olhar
Pingando uma imagem ou duas
Tornando o tolo em santa realeza
Glossário de idéias mal defendidas
Crendo que dure a geometria…
Nem todo um livro de Ângela
Recolhe essa anatomia desfigurada do desejo.
Há algo que lhe escapa
Como se pensássemos na evolução de um mesmo dilema:
Somente a impostura garante o sucesso?
(…)

Estudos de Pele. Um livro original na medida em que pratica um exercício de semântica, trabalhando com materiais provenientes, ou ao menos familiares, ao universo explorado pela psicanálise.

[2005]




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