No título Estudos
de Pele, o último livro de Floriano Martins, a palavra pele parece sugerir
uma pista falsa. Entrar no texto é praticar Um
rasgo bem dentro do abismo, onde o coração dispara e ninguém pode conter a presença do indizível. Trata-se de
adentrar um labirinto com passagens em múltiplas direções. O roteiro conduz a
um descentramento e este se dá em face de um referencial: o conceito de
identidade. Num capítulo da Parte III - O
hóspede -, que mescla prosa e poesia, é discutida a questão da identidade,
na arte ou fora dela. O mesmo em face
do mutável. Desde a Parte I, o texto dá espaço às suas visitas perversas (algumas personagens bíblicas
mulheres (em Paródia do cadafalso) e
várias outras como em Um livro de Ângela,
são apenas dois exemplos. A inesperada visita dessas sombras
perturbadas não me leva a pensar senão em uma coisa: temos que aprender a ter
mil vidas a um só tempo. O que
parece faltar às vezes a essas “sombras” (no caso das bíblicas) é a leveza de
ser outra coisa, sem a carga de ressentimento que as liga umbilicalmente a seus
contrários. Como em
Silentes Suplícios
(Marta).
A obra é dividida em nove
partes: I – Paródia do cadafalso, II – Sombras raptadas, II – Crime & Fuga,
III – Rastros de um caracol, IV – Dores de nada, V – Dália do coração negro, VI
– Lusbet: eis o abismo, VII – Um livro de Ângela, VIII – Ruínas exaustas, IX –
Modelos vivos.
As labirínticas
passagens, as múltiplas direções sugeridas pelo texto de Floriano sinalizam por
vezes uma espécie de curto-circuito nos níveis tidos como normais de percepção
da realidade cotidiana dentro dos mecanismos em que está estruturada a
linguagem da vida em sociedade. É o que ocorre em determinadas situações
narradas, como a que temos em O Cão e o Lustre. A cena remete à idéia de
demência (uma forma bem próxima da loucura); mas no texto é, nada mais nada
menos, que a transcrição, para a realidade objetiva, do flash agônico de uma subjetividade em ruína, a da avó enferma,
visitada pelo neto, pela última vez: Lembro
que havia um lustre pendendo do teto. A pouca voz me disse que ali estava com
ela aquele negro cão, quieto, confiável, suspenso no vazio. Cão ou lustre? Luz
ou escuridão?
Mas se na alucinada
visão da avó o cão e o lustre são concretamente a mesma coisa, em Plano de Fuga o Anjo Líquido derrama-se na direção do abstrato, do invisível: O anjo derramando-se no copo assustava-me ao
dizer o quanto a vida pode ser outra quando não se tem para onde ir dentro de
nós. A vida pode ser outra, mas a identidade? O texto persegue a fuga
obsessiva do mesmo (que a psicanálise
nega), enquanto trai (dúvida ou “ato falho”?) certa inquietude quanto ao ser: E se todas essas sombras não forem apenas
uma única sombra, a minha, a provocar-me de inúmeras formas? Evocaria então um verso de Luís Miguel Nava
em que confessa ter a ‘identidade acelerada’.
Inconsciente ou não, o
que o texto persegue é a identidade estética. O poema Flagrantes no assoalho (Parte III) expressa um ritual encantatório
em que o amor, condenado à morte pela estabilidade do encontro (como se a vida fosse apenas caber em
permanência), é convocado à vertigem da busca incessante,
(…)
com deuses assombrosos percorrendo a casa, laminando
vertigens para um livro, buscar-te,
buscar-te,
jamais desalentar-se
aguar rios, deixar-se desaguar,
nenhuma lição, apenas o corpo caindo,
a buscar-se: e buscar-te.
Esse ritual encantatório
é a própria poesia, perseguida como uma caça onde quer que se esconda, seja no
ínfimo ou no grandioso:
(…)
em uma síncope de obsessões, buscar-te, amor,
enquanto o poema te chama e prepara os archotes
que te conduzem por escadarias com línguas voláteis
a seduzir as páginas de teu corpo, sim, teu corpo,
três vezes teu corpo, buscar-te em recâmaras encantadas
úmidas invisíveis, um vento sibilante de janelas decifradas pela noite, um coro
de trevas, nota contra nota, o bordão entoado pelo acaso (…).
O código desse labirinto
pode estar em Visita de um Lagarto - momento do livro onde uma teia de imagens
oníricas se adensa em narrativa cifrada, de sentido subjacente ao texto. Por
aí, pele poderia conotar pele de
lagarto, em sua adjacência a mimetismo, metamorfose, forma que se muda
Não há no texto um
sentido linear a que possamos ter acesso, a não ser precisamente a construção
dessa fuga da identidade. Por isso há passagens em que não escolhe entre poesia ou prosa, fica na indefinição, no limiar;
deslizante para poder abranger a escuta quase psicanalítica do outro, sempre
outro, ao infinito. Daí os recortes nas visões do garoto, coladas nas páginas
dos livros e sopradas no ar, diante de inexistentes janelas:
Que forma assumiria tal vestígio em sua vida? As formas
significam muito pouco. Poderia seguir recortando-as. Por uma aurícula errante
trataria todas as cobras de duas cabeças. Chamaria raio os esfaqueamentos
misteriosos que não raro eram comentados em casa E daria pernas ou asas ao pescoçudo
gramofone da avó. As formas não lhe bastavam. Um novo personagem lhe despertara
para tanto. Arrastava-se brincalhão sobre seu corpo. Não lhe eram mais
enfadonhos os sonhos, embora seguissem silenciosos e em repisado repertório.
Tudo permanecia o mesmo, mas ganhava em significado.
O instinto natural de subversão nos leva a ouvir o outro, a
contraí-lo enquanto perversão essencial à sua própria existência (Floriano Martins na
apresentação do seu Alma em Chamas. 1998).
Um Livro de Ângela é momento diverso, em que a narrativa se
aclara, torna-se quase linear em seu jorro de imagens urgentes, como a captar o
ritmo frenético do instante que passa, através de uma daquelas mil vidas.
(…)
Ângela me oferta a caligrafia de suas vertigens,
encrespa-me enquanto perdura,
é apenas um instante,
e quando lhe abrimos as vísceras não há semântica que nos
leve além do instante.
transfigurado ressurrecto melancólico derruído,
porém aquecido pela mesma complexidade:
a dor do instante.
Enquanto metatexto, pratica uma auto-incisão e cria sua
própria imagem (narcísica):
6.
Escrever assim em quebradiço
Dando a falsa idéia de ser nada
Pender para um ponto ou outro
Mudando de forma ou de olhar
Pingando uma imagem ou duas
Tornando o tolo em santa realeza
Glossário de idéias mal defendidas
Crendo que dure a geometria…
Nem todo um livro de Ângela
Recolhe essa anatomia desfigurada do desejo.
Há algo que lhe escapa
Como se pensássemos na evolução de um mesmo dilema:
Somente a impostura garante o sucesso?
(…)
Estudos de Pele. Um livro original na medida em que pratica um
exercício de semântica, trabalhando com materiais provenientes, ou ao menos
familiares, ao universo explorado pela psicanálise.
[2005]
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