quinta-feira, 4 de setembro de 2014

IVAN JUNQUEIRA | Os tormentos da poesia

 

Não são poucos os poetas que, por serem bilíngues ou por razões que se diriam estratégicas, escreveram em outras línguas que não a sua. Assim o fizeram Pessoa, Eliot, Rilke, Brodsky, Moro, Huidobro e até mesmo o nosso Manuel Bandeira, que, tradutor soberbo, jamais conseguiu verter para o português nenhum dos versos que escreveu em francês. É esse o caso de Floriano Martins em Los tormentos miserables del lenguaje y las seducciones del infierno en los instantes trágicos del amor de Barbus & Lozna, título de inequívoco sabor quevediano, mas que de Quevedo nada tem, mesmo porque não foi essa a intenção do autor. A intenção é bem outra e, sem dúvida, justificada por sabermos todos ser muito pouco o que sobrevive de quase tudo o que se circunscreve ao gueto da língua portuguesa. E estranha que assim seja, já que o português, além de língua culta, é a sexta mais falada no mundo. No caso de Floriano Martins – talvez nosso maior especialista em poesia hispano-americana –, a opção foi claramente estratégica, ou seja, buscar maior difusão de sua poesia em âmbito hispânico e, como disse uma vez Huidobro, furtar-se a certos vícios de linguagem e alcançar assim maior simplicidade na expressão poética. Outro importante detalhe: essa prática nada tem, pelo menos em Floriano Martins, de contumaz ou obsessiva, o que o situa em posição contrária à do bilíngue cabal ou por fatalidade, como é o caso do romancista carioca Per Johns, que se move muito à vontade em pelo menos duas línguas: a portuguesa e a dinamarquesa. E no caso deste último o impasse se torna amiúde dramático, como ele próprio observa numa das passagens metalinguísticas de As aves de Cassandra: “O arraigado é um com sua língua. O bilíngue é dois e nenhum”.
Ademais – e nesse passo o admite o próprio poeta –, toda a sua produção posterior a Tumultúmulos (1994) vinha padecendo de certo barroquismo, de uma cumulação metafórica que acabou por lhe engendrar, não uma solução, mas um labirinto no qual nenhum fio de Ariadne lhe poderia valer. E aqui, mais uma vez, se configura aquela opção estratégica a que há pouco aludimos. E a verdade é que toda a sua poesia ganha a partir de então um novo impulso. Na aventura hispânica de Los tormentos miserables se entrelaçam harmônica e organicamente a sensibilidade métrica, a forma fixa (no caso, a do soneto, ainda que algo atípico) e a prosa poética de largo fôlego, como desde sempre, aliás, cultivou o autor. É bom que se advirta, porém, que Los tormentos miserables não constituem um récueil poético, e sim um núcleo temático (ou problemático) que se esgalha em 46 fragmentos, ou outros tantos poemas, se assim o preferirem. É bem de ver, ademais, que o poema se inclui numa vertente algo rara da lírica brasileira: aquela que privilegia a poesia (e a metapoesia) do pensamento, como a exerceram entre nós Carlos Drummond de Andrade, Jorge de Lima e, talvez mais do que qualquer outro, Dante Milano. Seria assim como a poesia da poesia, um áspero e pungente esforço de ascese, tal como o vemos no recente A via estreita, de Alexei Bueno. E aqui não há como escapar: toda essa práxis, que em boa hora enfrenta e afronta a banalidade e o metaludismo em que se converteu considerável parte de nossa poesia contemporânea, nos remete às matrizes seminais em que esplendem os nomes de Hölderlin, Novalis e Leopardi.
Por isso mesmo é que se vê, nos versos e entrelinhas de Los tormentos miserables, uma permanente oscilação entre o lírico e o trágico, vertentes por definição antagônicas entre si, mas que encontram, sobretudo em Leopardi, uma como que superação desse conflito ou, ao contrário, sua mais consumada cristalização. Não foi à toa, a propósito, que a ensaísta Helena Parente Cunha abordou a questão em O lírico e o trágico em Leopardi (1980), onde sustenta que a flutuação “de um extremo a outro, da ilusão à desilusão e vice-versa, que movimenta a estrutura dos Canti, se estende à alternância do trágico e do lírico”. E essa alternância, tal como a vemos em Floriano Martins, nos leva a situar o conflito entre razão e sentimento sob o ângulo da abordagem a que se arriscou aquela ensaísta quando observa: “o sentimento cria a ilusão do espaço lírico, que a razão demole no tempo trágico da desilusão”. E é por isso talvez que, já no próprio título do livro, Floriano Martins nos remeta a “las seducciones del infierno en los instantes trágicos del amor de Barbus & Lozna”. Entende-se assim que, no fragmento 15, escreva o poeta:

¿De dónde viene el dolor? Nuestras acciones
están viciadas en tal orden de quejumbres
que la felicidad es una desesperación. Cada uno
habla de sí mismo, en nombre de su amor.

Como melhor se entende ainda quando, no fragmento seguinte, nos adverte:

Errante y Barbus, mi amor baja hasta el vacío, ¿pero
que es lo suyo en ese viaje redondo? Lo que fuimos
ya no somos. ¿Que es lo mío sino la nada, el ilusorio?

Vê-se aqui que o amor se constrói e se destrói como naquela tríade hegeliana em que a maneira de ser do ser é deixar de ser o ser para vir a ser o nada e a maneira de ser do nada é deixar de ser o nada para passar a ser o ser. Já não o dizia Heráclito de Éfeso sete séculos antes da era cristã? E não o diz agora Floriano Martins quando conclui que “lo que fuimos ya no somos”?
Não bastassem essas “seducciones del infierno”, cumpre denunciar ainda que as entranham os “tormentos miserables del lenguaje”, vale dizer: os tormentos da poesia. Pois o poema de Floriano Martins constrói e desconstrói também um discurso que se estrutura sob o signo da metalinguagem, como se vê em diversas de suas passagens. E tanto Barbus quanto Lozna são como emblemas tangíveis desse conflito:

Hacia el principio caminan todas las muertes. Eres el infierno de las transfiguraciones, un abismo de huesos abierto en tu desnudez de cortafuegos. Tu nombre es Lozna.

E logo adiante, no fragmento 10:

Lozna es una herida que no cicatriza: son palabras con que el tiempo quiere despedirse de nosotros. La lengua tocando la sal en su primero día de olvido, la oscuridad tomando el pulso de un alma sin regocijos.

E apesar de toda essa desolação leopardiana, os amantes dançam enquanto o mundo esplende em desastres, “mientras el hombre no esperaba nada del hombre, mientras el asombro quedaba sólo”. Mas a decepção avassaladora do trágico volta a subjugar a efusão lírica, como o atestam os dois últimos versos, ainda de cunho metalinguístico, do fragmento 15:

La mismíssima flor del mundo es siempre nada,
no hay pausa, solamente una palabra decepcionada.

Ainda assim, o poeta resiste às ameaças de esfacelamento da palavra, daquela mesma palavra de que nos fala T. S. Eliot no quinto movimento do primeiro de seus Quatro quartetos, quando escreve: “As palavras se distendem, / Estalam e muita vez se quebram, sob a carga, / Sob a tensão, tropeçam, escorregam, perecem, / Apodrecem com a imprecisão”. Também Floriano Martins ergue sua voz contra o exílio que a desterra, tal qual se lê no fragmento 22:

Hasta la humedad más profunda
del silencio buscaré la desterrada unidad del verbo,
bajo el limo de las asfixias, bajo la dimensión del exilio.

Dissemos no início que Los tormentos miserables é também um poema de abissal e dolorosa ascese. É que entre esses “tormentos miserables del lenguaje” e as “seducciones del infierno en los instantes trágicos del amor de Barbus y Lozna” interpõe-se, absoluta e inumerável, a presença da morte, que se insinua de fragmento em fragmento. Barbus e Lozna só poderão superá-la pela dinâmica da ascese, pois tudo em derredor sabe apenas a caducidade e a contingência terrenas. E não os socorre nenhuma crença religiosa, nem mesmo a nossa arraigada e tenaz fé cristã. Pelo menos é o que se conclui da leitura do fragmento 25, onde sentencia o poeta:

No se resuelve la historia en su repertorio
de agonias. El Calvario no es centro de nada.

E adiante, no fragmento seguinte:

Me gustaría
aceptar tus versiones de la muerte, pero tus versos hablan
de un paraíso perdido que es un emblema del horror
que vivimos. No hay la podredumbre del cuerpo ni una
trayectoria de ángeles. Los que piensan en la vida
deben entender que el dolor es parte de la misma alegría,
que no hay una tumba de turno ni felicidad prometida.
El centro del hombre es lo que hacemos de nosotros.

Ou seja, como o pretendia o sofista pré-socrático Protágoras de Abdera no século V a.C.: “O homem é a medida de todas as coisas: das que são, enquanto são; e das que não são, enquanto não são.” Se de um lado é lírico o amor de Barbus e Lozna, de outro é também trágico porque vive ao desamparo cósmico e sob o signo de uma luta que, aqui, sim, se confunde àquela agonia que Unamuno vislumbrou na resistência desse mundo cristão que, conquanto moribundo, não morre jamais. Barbus e Lozna vivem assim no limiar da morte, como também às portas da morte vive o poema inteiro. E a tal ponto é nessa condição que vive e fulgura o texto que o poeta será levado a perguntar, como o faz no fragmento 34: “¿Es la poesía una forma posible de la vida o de la muerte?” O amor em ruínas de Barbus e Lozna, que não é “una sagrada revelación”, mas apenas a “prueba del amor reconocida por Hölderlin”, ilumina todavia toda a atormentada tessitura desse longo e pungente poema, um poema raro e quase solitário no panorama de nossa presente literatura, um poema em que o amor, para ser aceito e compreendido, desdenha das provas que o atestam. Ou como diz o próprio poeta:

No hay pruebas del amor: todo es risible en los argumentos.


[1999]

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