terça-feira, 9 de setembro de 2014

FOED CASTRO CHAMMA | Escritura Conquistada, de Floriano Martins


O fogo da palavra envolve com a imagem a linguagem poética. A memória retém a fulguração do deus que a contamina, devolvendo de suas entranhas a Musa, que os poetas comemoram em renovados ciclos de invenção, preservando a descoberta do eu em cada Signo, com a luminosidade que a consciência transforma em poema ou canção. O entrelaçamento com o real originário da negação determina o condicionante da representação que se desenrola de maneira a configurar a realidade, no interior da qual amplia-se o quadro fenomenológico do ser e seus vínculos com o real, cuja dialética o logos recolhe ao código linguístico.
No diálogo com o nicaragüense Pablo Antonio Cuadra, que abre a série de entrevistas com poetas ibero-americanos reunidas em Escritura Conquistada pelo também poeta Floriano Martins, observa-se esse enigma da criação nos dois poemas intitulados “O barco negro” e “ Ancestrais”. O sonho e a realidade se completam na memória do poeta. A dessacralização do eu abre rumo ao moderno no sentido dado à fealdade e ao brilho enquanto identidade que, ao construir a História, esvazia o Mito. Tal como o venezuelano Juan Liscano, penso que a “poesia não é fuga e sim meio” de se chegar ao eu através da Semelhança. Há uma lição nas entrevistas de Escritura Conquistada de alto teor didático para uso obrigatório nos cursos de Letras. “O poeta é fruto de si mesmo.” Todavia, ao negar a liberação interna por meio da obra de arte o entrevistado diria que a liberação interna induz ao saber. A experiência é uma prática do saber e objeto primordial da poesia como devia admitir Lautréamont ao afirmar que todos somos poetas. A assertiva de Juan Liscano de que se une ao Surrealismo através do arquétipo femina é confirmar o mergulho na origem do ser, de onde emerge como imagem, signo e imaginação.
Do mesmo modo, no diálogo com o Absoluto, entre “signos cabalísticos”, o chileno Enrique Gómez-Correa “desbrava o reino do imaginário”, reino da Mandrágora. A liberdade de criar está em aderir à imaginação, pois nesse primeiro estágio crítico da razão o poeta inaugura o duplo como metáfora, esvaziando assim o reduto do mito, no qual reina o eu e o poder originário de uma arte mágica que o Surrealismo resgata.
Fernando Charry Lara, da Colômbia, ao referir-se à essência das coisas deixa explícita a Voz, que o poeta transforma em som e ritmo e recolhe ao passar da fala à linguagem. Do mesmo modo que o peruano Javier Sologuren, penso que o signo é a alça que dá expressão ao sentido, atendendo a imagem à linguagem poética em sua mira de essências. A concepção do homem em harmonia consigo mesmo associado à expansão da consciência resume pois a criatividade. Para o chileno Rolando Toro a ética de Sócrates nivela-se à concepção solidária de Jesus no sentido universal do ser. A conversão da dor, da morte, da ausência e do esquecimento é o âmago da Beleza como fulguração do eu, que o poeta revela à “sociedade secreta” dos poetas. Penso nas palavras unicamente como “via de acesso à realidade”, onde se completa a fusão arquetípica com a memória. A viagem pela imaginação e o sonho é produtora do tempo resgatado pela memória. O império da imaginação é o da arte mágica, desafiadora do logos no sentido de ascensão prometêica do eu ao real. Ouço ainda Rolando Toro dizer: “Estranho o pântano que nos engendra. / Para podermos ser nós mesmos / devemos deixar de ser”.
As raízes poéticas da linguagem pertencem, imagino, à ordem secreta da imaginação que não se mescla à ratio sem provocar atrito. A poesia é um culto e o poeta o oficiante. A roda que perlustra o sonho devolve o passado ao futuro. Como conjuro a poesia revolve a roda que lustra o sonho. O terror “como objeto magnífico” fundamenta a Beleza e a Verdade. Sem os “capuzes”, a poesia é invenção. “Sílaba incandescente do desejo”, do chileno Ludwig Zeller, é um “redemoinho de angústia” diante das “serpentes de areia”, para as pupilas no deserto; são Hieróglifos, quartzos da noite, ramos escuros “que em nós se fecham para sempre”. Ao correr “a água por um mesmo espelho”, repetimos os “enigmas”  de Ludwig Zeller.
O Surrealismo ibero-americano desde o início do século está à frente do formalismo hegemônico voltado para o social. A poesia deve ser escrita com sangue, como queria Nietzsche, para se aprender que “sangue é espírito”, aprender a transformar as serpentes da cabeça de Medusa em Beleza. O venezuelano Juan Calzadilla sabe que o “curso abissal do poeta” é a “espessura de leituras”.
A noção de fazer poesia com palavras implica adesão ao Signo como ferramenta da imagem e realidade virtual do poema. Uma previsão arcaica do avanço da técnica na sociedade do espetáculo. “Estilhaços da linguagem são a memória e o sonho”, diz Pedro Lastra, do Chile; daí a estranheza com que anuncia o mundo como de cunho fantástico. Os versos em “Pontes movediças” assinalam o transitório como fator fantasmático da Presença. Sigo completando o que diz o venezuelano Alfredo Silva Estrada, que todo poema é canto na medida em que a Voz se incorpora à palavra. O poema é a Morada do homem, sugere Hölderlin, é negação e fundação do que o poeta inventa. Toda experiência é reinvenção das “vozes subterrâneas” que emergem. Não acredito no “declínio geral desta época”, como queria Borges, desde que o reencontro do eu é ainda a grande meta frente ao alto desenvolvimento da técnica, onde ciência e poesia assumem análoga realidade virtual. Assim pensa também o mexicano Gerardo Deniz. “A sombra é a única muralha”, diz Eugenio Montejo, da Venezuela, completando o duplo que é a vulnerabilidade trágica do ser.
O dever mágico nos poetas, indagação formulada por Floriano Martins a Sérgio Lima, está em transformar a imagem no imaginário como fundação do ser, acepção inclusive de Bachelard e de Blake. “A arte é meio de expandir a consciência”, afirma Marcel Duchamp. A imagem é a essência da poesia. Sérgio Lima é um grito na opacidade de uma retórica afastada das fontes verdadeiras da Poesia. O cubano José Kozer constrói uma linguagem pinçando as origens no país que emerge do Bezouro e coça a barba diante da harpa de Davi. A ancestralidade é o arquétipo de José Kozer. O hermetismo da Cabala organiza sua poética compulsiva. Inegável também o talento do brasileiro Sérgio Campos. Belos poemas que justificam o “esquecido assombro de estarmos vivos” e nos reserva o campo de liberdade da poesia que emerge na palavra e o boliviano Eduardo Mitre converte em linguagem, transformando o mistério do eu em mirabilia e estratégia da fala que se perde na Semelhança.
É diabolicamente importante este livro que traz como título a confirmação de Escritura Conquistada. Ich Ruhmer. É como o Sol, o tempo da Razão ardente, epígrafe extraída de um poema de Apollinaire para ilustrar a poesia do boliviano Eduardo Mitre, que recobre em toda sua extensão o esforço bem sucedido de Floriano Martins.

[1999]




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