Julgado,
em 94, por um poeta (Marcus Accioly) e dois cantores de música popular (Milton
Nascimento e Paulinho da Viola), o prêmio Nestlé de poesia revelou o nome de Aníbal
Beça dentre 7.038 concorrentes. "Livros de todo o país", escreve
Marcus Accioly, "em caixas e caixas, foram lidos e analisados durante
meses, até uma possível certeza, uma convicção. O trabalho foi compensado pela
alegria do resultado, único e unânime: Suíte para os habitantes da noite."
Em outras palavras, nesses concursos os
vencedores são escolhidos por exclusão, diminuindo progressivamente, na
proporção das leituras, as exigências dos julgadores. É fenômeno elementar de
psicologia, sem falar no tédio e no cansaço. Os poemas premiados, agora
incluídos em volume (Banda de asa.
Rio: Sete Letras, 1998), buscavam sugestões ou assimilações gratuitas no
vocabulário musical, aplicado de maneira arbitrária e, muitas vezes, com
intenções humorísticas: "Chorinho para bandolim, cavaquinho, flautas e
violões", ou "Carimbó para gambás, tambor de onça e clarineta",
e assim por diante.
Um comentarista dessa poesia afirma que,
"em cada verso, em cada imagem, encontra-se uma intensa catexia
objetal", do que não duvido, embora prefira os poemas inspirados pela
cidade de Manaus. O tropismo surrealista de Aníbal Beça estimula os impulsos
analíticos da crítica. O "Poema cíclico", por exemplo, "trava a
batalha com o clássico e o moderno", em versos destacados por Paulo Graça:
"dos meus olhos saltam/ dois pássaros ariscos/ prontos a deflorar
begônias/ em setembro". Ou ainda: "A trave dos meus olhos é pólen de
crisântemos: farpas cronológicas". Esse surrealismo tardio, que poderíamos
imaginar perempto, ainda é praticado em capelas iniciáticas através do
continente, sem excluir o Brasil, cujo grupo surrealista foi organizado e é
mantido por Sérgio Lima (Escritura
conquistada. Diálogos com poetas latino-americanos. Floriano Martins.
Fortaleza/Rio/Mogi das Cruzes: Letra & Música Comunicação/ Biblioteca
Nacional/ Universidade de Mogi das Cruzes, 1998).
Entre os "latino-americanos",
Floriano Martins incluiu vários brasileiros, como Ivan Junqueira e Donizete
Galvão, mas a verdade, nas palavras de Sérgio Lima, é que o modelo na América
Latina "é insular e não continental, pois trata-se de ‘ilhas
culturais’", o que se confirma de forma por assim dizer física e
demográfica nas observações do cubano José Kozer, ele próprio judeu de origem
ashkenazi, filho de polaco ateu e comunista e filho de uma checa burguesa e de
pais judeus ortodoxos: "em Cuba, nunca vi um porto-riquenho ou um
dominicano; nunca vi um mexicano ou um equatoriano; nunca vi um uruguaio ou um
argentino. Em Nova York, tenho visto até paraguaios (...)".
O advérbio demonstra que a
"verdadeira" América Latina situa-se nas duas costas dos EUA... De
fato, trata-se de um mito mental e de uma utopia do intelecto, para nada dizer,
claro está, dos subentendidos políticos: não são as línguas que separam, não
havendo nenhuma identificação orgânica nos países hispânicos entre si, mas a
psicologia e a história, além dos variados ressentimentos que se foram
acumulando ao longo dos séculos: "É curioso que este continente de países
tão diferentes leve um nome como se fosse um só país", escreve Cabrera
Infante em páginas de Mea Cuba que
valem a pena reler.
Nesse contexto, é possível que a
propensão surrealista, respondendo à sua natureza profunda, seja uma técnica
subconsciente de superar a realidade pelo imaginário e de compensar o
sentimento de inferioridade pelo desafio do hoje desmonetizado "realismo
mágico", mais mágico do que realista. Para o que nos interessa, as
entrevistas realmente importantes são as dos brasileiros e respectivas visões
pessoais a respeito das nossas letras. Assim, o depoimento de Ivan Junqueira,
desmistificando alguns tabus e ideias-feitas com que se alimentam os espíritos
simples.
Nossa cultura, diz ele, é européia, como,
aliás, a de toda a América Latina: as raízes são portuguesas, espanhola,
francesas, alemãs, inglesas, e não africanas ou indígenas. Não menos vigorosas
são as suas apreciações sobre Oswald de Andrade e o concretismo (mais a
invenção de Oswald de Andrade pelos concretistas e derivados), na linha da
revisão de valores sintetizada pelo argentino Leônidas Lamborghini: "devemos
desmitificar também no que se refere ao fazer poético", ao que o
venezuelano Juan Calzadilla retruca, sem saber, com uma dessas verdades
elementares que muitos preferem ignorar: "Segundo Montale, não há
contribuição importante em poetas que não provenha da prosa. Sem prosa não
haveria boa poesia moderna, e menos ainda entre nós, na América Latina, onde se
adotou, e espero que definitivamente, o verso livre, e onde são cada vez mais
deploráveis os ensaios de restauração da rima e da métrica tradicionais. A
vantagem da prosa é que com ela se pode pensar, presta-se como instrumento a
serviço do qual a intuição e a reflexão na produção de pensamentos seguem
juntas, porém separadas. Na poesia, em troca, a intuição contém ou afoga o
impulso reflexivo ou o torna desnecessário, uma vez que se recusa a qualquer
explicação".
Aníbal Beça, de seu lado, propõe a teoria
poética no plano das efusões líricas: "Que ela seja clássica moderna
contemporânea de vanguarda comportada marginal lírica épica que ela seja nada e
tudo e nada: varal chuva casa alicerce arcabouço não importa e nem defini-la
comporta-se o que reporta é a fatura do e para o homem assim como a porta da
rua é a serventia do poema".
Claro, em termos de reflexão crítica isso
não significa nada, confundindo na mesma equivalência a forma e a substância,
problema levantado por Floriano Martins na entrevista com Juan Calzadilla,
vanguardista, ao que parece, acima de qualquer suspeita. Mas, na medida mesmo
em que é hermético, metafórico ou arbitrário, o surrealismo é uma poética de
conteúdo, ou seja, exatamente o oposto do que se convencionou entender como
arte moderna.
[1998]
[O Globo, Rio de Janeiro, 29.08.1998]
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