É um livro estranho, sim, este de Floriano
Martins, poeta cearense, que chega às minhas mãos. Estudos de Pele,
lançado recentemente pela Editora Lamparina, é composto de poemas onde a tônica
do estranhamento é uma constante. Para o leitor e, parece, para o próprio
poeta. Não é poesia discursiva, inventiva ou clássica. Ao mesmo tempo, é poesia
discursiva, inventiva, clássica. Um livro que rasga a pele da poesia de forma
aparentemente sutil, mas em alguns momentos com uma volúpia que nos faz
refletir nestes tempos de guerrilha, sejam bélicas ou culturais.
Contador Borges é muito
feliz na orelha do livro, quando diz que em Estudos de Pele a sensação
de vertigem é imediata, de desconforto idem. “O estranhamento desses Estudos
de Pele, o chão do poema, em princípio trêmulo, escorregadio como gelo
fino, vai aos poucos se firmando aos nossos olhos, fazendo sentido à deriva,
desdobrando sua interrogação aberta só respondida com outra indagação adiante,
luminosa, atirando o leitor contra a parede, instigando o homem que ele é
intranqüilo neste horripilante começo de milênio, mas que aqui se potencializa,
à beira do abismo, pensando-se no extremo de si mesmo”, analisa Contador
Borges, análise essa que assino embaixo.
O livro todo, como
explica o próprio Floriano Martins numa espécie de apresentação à obra, é um
constante vaivém entre o corpo humano e o corpo da criação. De um lado, a pele
do erotismo, que perpassa cuidadosa e bem construída por todas as páginas do
livro. De outro, a pele da palavra, ou da linguagem poética, com resmungos,
amuos, questionamentos e tiros certeiros do poeta.
A pele do erotismo
surge, sinuosa, logo no primeiro capítulo - “Sombras raptadas” (aliás, a sombra
da interrogação parece perseguir o poeta em todos os poemas). Referências
femininas diversas surgem imponentes nas páginas, por mais submissas que possam
parecer. Com elas, o poeta trava um diálogo-monólogo (acreditem, isso existe,
sim, na poesia de Floriano Martins) onde o leitor acaba sendo o principal
interlocutor. Lembra temas bíblicos e adapta, com extrema beleza (isso ao
lembrar que Camões já o tinha feito) a história de Jacó, com o eu-lírico
esperando por sete anos um entendimento “sobre a terra que carrego em meu
ventre”. Aliás, esse primeiro capítulo parece um lento e provocante ritual, com
o cultivo de orações em busca do gozo prometido pelas diversas personagens
femininas presentes.
Em outros capítulos, o
ritual erótico é também uma constante. Como no belíssimo poema “Vestes”, do
capítulo “Crime e fuga”. Aqui, os panos nus servem de metáfora para o
sangramento da pele:
“Os panos como papiros, inscrições invisíveis
que ensinam a
manter quente a cabeça de um deus morto.
manter quente a cabeça de um deus morto.
Nus.
Com a medida do inferno de cada dobra
do tecido de que somos feitos”.
Mas é o ritual poético que surge, também com muita força, neste mesmo capítulo. Enquanto deixa anotado em algum lugar que não deve se lembrar de mais nada, o poeta vai lembrando coisas, vomitando versos que nos fazem refletir. Alguns desses versos parecem sinopses dos nossos acontecimentos em pleno 2004; “O esplendor de imagens vicia o poeta em uma enganosa metafísica. Tudo nele é forma transparente”, diz Floriano Martins. E não é verdade que estamos ficando tão viciados nesta obsessão pela imagem? Lembro agora, até, um comentário de um poeta tradicional aqui do Nordeste ao receber o elogio de um amigo às imagens presentes em sua poética: “e o meu poema é uma igreja, para ter imagens?”.
Mais na frente, o
cearense é incisivo, ferino, autocrítico. Fala que os poetas são vítimas de
nada: “A única enfermidade que lhes
cabe é a presunçosa arrogância. Injustos, capitais e amargurados, aqui estamos
os poetas, todos, tolos. Onde estala a liberdade?”.
Em outro momento, do
mesmo poema, não por acaso intitulado “Arlequim”, é deliciosamente irônico: “Risível
um poeta falar de ajuste de termostato? Se considerado que hoje mal troca a
lâmpada queimada dos próprios versos, sim. Um encontro de poetas? Sempre temo
pela ruidosa agonia de espelhos. A terra enferma, o silêncio indecifrável,
essas pequenas agonias rumorejantes. Seja como for, melhor que se encontrem,
sempre. Assim doemos ao vivo, uns diante dos outros”.
Doemos ao vivo,
Floriano, em busca do hóspede certo para a poesia desesperada que teima em nos
cutucar. Em fuga dos espelhos que estão sempre a exibir a imagem poética que
queremos ver. E nada mais que isso.
“O que faço com o poeta
depois de escrito o poema”, indaga Floriano Martins. Diria, que deixá-lo
abandonar-se nas mãos do leitor. Ele, o leitor, é que dá o destino merecido a
cada poema e a cada poeta. Ele, o leitor, também se dividirá entre encanto e
estranhamento com a leitura de Estudos de Pele. Mas não é para isso que
os bons livros são feitos?
[2004]
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