segunda-feira, 29 de setembro de 2014

JORGE PIEIRO | Ante a busca do que se tarda



Não é fácil ao ser humano conviver com uma causa que, à revelia, o eleva à condição de guardião ou legítimo representante. Diante de todas as ocorrências mundanas, o desvario, a inconseqüência, o oportunismo e o equívoco parecem tomar lugar de destaque nas vitrinas. Aos curiosos passantes, fica apenas um reflexo dos brilhos falsos. Daí, a reprodução de modelos e o surgimento de modismos é inevitável, infelizmente.
Quando se trata de poesia - esse gênero sempre em ebulição, congestionador do pensamento, tão reproduzido e decantado, e também tão fustigado por mentes pródigas - a evidência desses efeitos é estarrecedora. As conseqüências, então funestas, revelam deformações, na maioria das vezes, reparáveis apenas com muita paciência, persistência e dedicação.
Se, no Brasil de tantos poetas, a poesia se multiplica em rios de muitos afluentes, deixando o pobre leitor - quando há - à mercê de correntes e contracorrentes, imaginem a desinformação que paira sobre esse mundo, a um só tempo, sem fronteiras e (im)perceptivelmente marginalizado. Não é à toa que enormes catedrais se erigem e fazem ecoar suas doutrinas, seus credos, instigando adeptos a se concentrarem nos limites do próprio umbigo.
Expandindo esse ponto de vista, o que se poderia ainda dizer a respeito do (des)conhecimento de um momento pleno do pensamento universal, equivocadamente reduzido a acidente de comportamento estético dentro dessa estafante modernidade - o Surrealismo -, e, extrapolando, sobre a indigência desse conceito dentro da história da poesia brasileira e, exponencialmente, a partir dos limites da América Hispânica?
Para resumir essas idéias, exemplificando-as, eis o que o ensaísta, crítico e poeta cearense Floriano Martins, apresenta ao leitor brasileiro: O começo da busca - O surrealismo na poesia da América Latina, obra que demarca um breve acesso à desconhecida história da literatura hispano-americana, amparada por uma dosagem crítica. A obra vem a lume como parte integrante da Coleção Ensaios Transversais, publicada pela Escrituras Editora, de São Paulo.
Como dedicado pesquisador de poesia, o autor de Escritura Conquistada - Diálogos com poetas latino-americanos (Letra e Música/ UMC/ Biblioteca Nacional, 1998) -, apresenta neste O começo..., uma primeira parte, em que extenso estudo introdutório defende idéias, tais como, a de que ''não se pode situar o Surrealismo eclodido na América Hispânica como imitação ou mero reflexo da corrente parisiense'', ou que ''o leitor brasileiro pouco ou nada conhece acerca da poesia hispano-americana'', ou ainda que, sem querer discutir sobre uma já desgastada e nunca esclarecida questão, acaba confirmando a presença do Surrealismo no Brasil, como bem defende o poeta Sérgio Lima.
A segunda parte do estudo, dá acesso a uma antologia dos poetas Aldo Pellegrini e Enrique Molina (Argentina); César Moro e Emilio Adolfo Westphalen (Peru); Octavio Paz (México); Enrique Gómez-Correa e Ludwig Zeller (Chile); Juan Sánchez Peláez e Juan Calzadilla (Venezuela); Roberto Piva e Sérgio Lima (Brasil); e Raúl Henao (Colômbia), numa amostragem da poesia visceral produzida ao longo do século XX. Trechos de depoimentos antecedem cada bloco de poemas, tudo em tradução do organizador.
A última parte, destaca entrevistas com Roberto Piva e Sérgio Lima (Brasil), Ángel Pariente (crítico espanhol), Francisco Madariaga e Enrique Molina (Argentina), como respaldo às conclusões do pesquisador.
Não cabe aqui discutir as aparências ou a verdade indesejada por muitos críticos literários. O começo da busca, em sentido contrário ao historicismo protagonizado por Octavio Paz sobre o Surrealismo na América, em sua obra La búsqueda del comienzo, é um resgate, ainda que tardio e acanhado - por razões mercantilistas? -, de uma das vertentes mais polêmicas da história literária contemporânea. Aderindo ao pensamento do autor, o Surrealismo, apesar das contradições e dos equívocos, ainda é a ''instância maior da poesia em nosso tempo''. As evidências de continuidade e renovação do movimento fora do âmbito parisiense, no passado, não podem ser desprezadas.
Pouco a pouco, ilumina-se a face obscura dessa vertente da poesia, muitas vezes vilipendiada no Brasil, conseqüência, não menos da rejeição dos críticos, mas da sonegação de uma verdade, fruto de antidemocráticas ações voltadas apenas para vaidades aparentes. Esta outra face da moeda, diga-se de passagem, pode fazer o pesquisador correr riscos, caso ele opte pela radicalização do pensamento, descambando para o mesmo engano de outros guardiões, ao protegerem seus credos e doutrinas.
No entanto, ao defender um fundamento, O começo da busca acaba insinuando e realçando as palavras de Emilio Adolfo Westphalen, para quem ''em poesia não há fórmulas de aplicação assegurada e é vã toda 'poética'''. Ou confirmando as palavras de Zeller: ''Eu estimo que os poetas temos uma essência comum em que a maior parte das vezes coincidimos: nem é tão consciente Valéry, nem são tão instintivos os surrealistas. Há um meio termo que permite valorizar melhor ambas as tendências. Além do mais, é sempre mais válido o resultado do fazer poético que qualquer teoria que posteriormente se torne rígida.''
Assim, dá-se a defesa de uma causa, apesar dos empecilhos e do tempo que se tarda.

[2002]

[Jornal O Povo, caderno Vida & Arte, Fortaleza, 26/03/2002]




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