quinta-feira, 4 de setembro de 2014

CLAUDIO WILLER | A poesia e sua rebelião total


Terá uma decepção quem procurar o entretenimento ameno nas 300 páginas de Alma em Chamas (Letra & Música. Fortaleza. 1998), de Floriano Martins, poeta e incansável divulgador da literatura. No texto introdutório, ele avisa que não está aí para brincadeira. Declara-se à margem de uma literatura contemporânea que “vai da previsibilidade dos versos arrebanhadores de prêmios, dísticos, soluços, rimários, primor xerográfico, à preguiça mental evidenciada pelo epigrama dominical e à presunção do hai-kai”. Não quer nada do que está na moda ou seja modismo: que não se esperem dele experimentos formalistas, nem epigramas engraçados.
Se Alma em Chamas vier a frustrar leitores inadvertidos, não será por seus defeitos, mas por suas qualidades. Essa “mescla de devaneio e exatidão”, nas palavras do autor, é opaca pela espessura; sombria pela seriedade; enfática, reiterativa, pela gravidade do que diz; complexa por ser, entre outras coisas, poesia sobre poesia, espelhando a erudição do autor. O conjunto de dezenas de trechos, alternadamente versificados e em prosa, dividido em sete partes, é, na verdade, um só poema. A família literária à qual pertence é a dos autores, no século XX, de poemas extensos, que procuraram restaurar a épica e recuperar um cosmos, uma totalidade. As grandes obras inconclusas, inventários de derrotas, como Altazor, do chileno Vicente Huidobro, e Invenção de Orfeu, do nosso Jorge de Lima, aos quais Floriano se refere explicitamente, e talvez os Cantos de Ezra Pound ou Wasteland de T. S. Eliot. As epopeias sem final feliz, nas quais Ulisses não retorna a Ítaca. Textos descontínuos, fragmentários, alguns com estrutura de colagem, modalidade visual eleita por Floriano Martins.
Para não deixar dúvidas sobre seus propósitos, inicia o livro com um poema longo comentando a esquartejamento de Sebastian, o protagonista da peça De repente, no último verão, de Tennessee Williams. Contudo, a uma dada altura, não é mais desse anti-herói ausente que ele fala, mas de cenas e personagens da Divina Comédia. Revela-se a amplitude do que pretende, aonde quer chegar: a todo lugar, a lugar algum. Assume a “tarefa de escrever um livro impossível: o da personificação da morte”. Por isso, “dissolve-se na matéria de suas metáforas, / misturado à visão do livro findo inacabado”.
Crítica não é catalogar autores. Interessa, mais que localizá-los em alguma topografia literária, mostrar, no plano da análise formal ou da indicação de conteúdos, o que os diferencia e lhes confere sentido. Mas um tema inevitável, evocado pelo próprio Floriano Martins, é sua afinidade com a escrita barroca, a “estética do excesso”, na definição de Severo Sarduy. No entanto, se tomarmos o barroco como beletrismo, expressão do Século de Ouro espanhol, ele se apresenta como autor de outra coisa, a escrita de um século de sombras.
É possível avançar nas definições negativas, do que Floriano Martins não é, com o que não tem a ver. Correlatamente, pode-se identificá-lo a uma complexa teia de autores, da antiguidade a contemporâneos brasileiros, com destaque para o romantismo iniciador de Hölderlin e Blake, e uma constelação de ibero-americanos, abordados no recente Escritura Conquistada (1998) e outras de suas obras. Tais afinidades são indicadas em epígrafes, dedicatórias e alusões. “À luz das palavras de René Char / saímos a recolher versos”. Integram um “sangradouro de palimpsestos”, em uma relação sempre intertextual, nunca paródica. Ele procura, não o distanciamento crítico da paródia, mas a recuperação e resgate, em uma metáfora de um diálogo com o leitor, cujos termos têm que girar ao redor de questões essenciais: “em que tempo ocorre o verso? De onde provém todo o mal da poesia?”
As referências mais produtivas para interpretar Floriano Martins vêm de uma área de sobreposição entre filosofia e poesia que integra a herança romântica. Obriga a citar Hölderlin, sobre os poetas em um tempo de carência; e Heidegger, por sua vez referindo-se a Hölderlin, sobre a poesia e a condição humana em um tempo sem deuses, no mundo dessacralizado. O sentido de Alma em Chamas fica mais claro no poema intitulado “Séc. XX: secretas ruínas”, no qual a história é designada como algo virtual, ilusão. Alude, assim, ao ensaio de Walter Benjamin sobre um quadro de Klee, no qual há “um anjo que parece querer afastar-se de algo a que ele contempla”. O que o anjo contempla são ruínas, acumulação de escombros: “o que chamamos de Progresso é a tempestade que o impele”.
Alma em Chamas refere-se também à descida aos infernos de Orfeu, patrono dos poetas. Mas é uma viagem sem volta, errância pelo subterrâneo. Nela, encontra sombras indistintas da unidade perdida, algo que não existe mais, que já se perdeu. Uma saída, assinalada por boa parte da literatura moderna, principalmente pelo surrealismo, está em Eros, na reintegração ao todo através da união amorosa. É dita em versos como estes: “teu corpo e o meu caindo sobre o mundo: / noite saqueada por uma caravana de relâmpagos”. Contudo, nunca deixa de nos lembrar, desde o início do livro, que Eros e Tanatos caminham juntos; que Dioniso, regente do êxtase, é também um deus devorador.
Seria correto, mas redutor, ver Floriano Martins como autor de uma crítica de fundo metafísico e romântico à sociedade burguesa. Seu empreendimento é mais radical: volta-se contra o tempo e os limites da condição humana. É a rebelião total. Por isso, já abre o livro proclamando-se inspirado em William Blake, o poeta-profeta herético, expoente dessa rebeldia.


[1998]

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